Existe uma história a se contar toda vez que acontece um encontro. Há rastros desse encontro. Memória. Arquivo. Fetiche. Notícias humanas.
Em O Museu da Inocência, o escritor turco Orhan Pamuk, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2006, narra uma história de amor impossível entre dois primos que acaba se transformando em uma adoração fetichista dos objetos relacionados a essa paixão. Na história, o protagonista coleciona obsessivamente coisas que foram tocadas por sua amada. Em paralelo, o escritor colecionou esses objetos, advindos de mercados de pulgas e casas de amigos. Objetos estes que estão abrigados no “Museu da Inocência”, em Istambul, em um espaço dedicado à memória dos personagens do livro.
Escondido perto da Avenida Istiklal, pulmão da moderna Istambul na costa europeia, um prédio vermelho abriga um museu curioso. No museu, não há paredes brancas, obras de arte famosas, tampouco objetos raros. Há uma coleção de objetos ordinários, comuns, rastros físicos de uma cena de amor – como, por exemplo, uma parede dedicada a abrigar mais de três mil cigarros dispostos em ordem com uma etiqueta de identificação. São pistas da angústia de um amor mal resolvido. O valor não está na natureza de cada objeto em si, mas sim em sua capacidade de despertar e trazer à tona todos os sentimentos e sensações ali colocados.
A criação do “Museu da Inocência” nos propõe uma reflexão profunda sobre o potencial dos museus em contar histórias nessa escala, de seres humanos individuais. Construções monumentais, que acabam distanciando o público, dariam lugar a cenários da vida real com objetos ordinários que lhe dão cor de vida – assim como nossas casas, a exteriorização do nosso universo particular, o lugar onde colecionamos aquilo que escolhemos, que colocamos a nossa energia e usamos de abrigo e proteção. Seriam nossos próprios lares os futuros museus?
Em seus estudos de Análise da Imagem, Walter Benjamin estabeleceu uma relação em que a imagem, como obra de arte, depende de sua aura, do seu valor de culto, da sua autenticidade e unicidade para existir. Relacionando esse conceito com o valor afetivo que colocamos em objetos tão próximos e presentes no nosso dia a dia, podemos considerar que tais objetos são dotados de aura e valor de culto. Uma releitura contemporânea do “ready-made” de Marcel Duchamp.
Se os museus são territórios de experiência e reflexão onde podemos repensar histórias e memórias, espaços que nos conectam com mundo, é urgente usar esses espaços para se aprofundar em universos particulares.
Os grandes museus sempre trataram de observar as civilizações, os Estados, a sociedade e os conglomerados, mas nunca o indivíduo em particular. Observamos as passagens históricas sem nos ater aos seus personagens, estudamos as guerras sem nos aprofundarmos a respeito da vida dos soldados que ali estiveram. O que sabemos sobre suas famílias, seus amores, seus desejos e medos?
Entrar no profundo do ser humano é compartilhar sentimentos e emoções em comum. É nos aproximarmos. Dar lugar ao íntimo em vez de abrigar a impessoalidade do coletivo é extremamente necessário para compreender o mundo de maneira mais humana. Assim, podemos mergulhar naquilo que há de mais singelo: nossas histórias pessoais, nossas memórias, coleções de uma vida dotadas de significado. Se há vida, há arte.
O futuro dos museus está dentro de nossas casas
por Guilherme Abud