Trecho da Argonáutica de Apolônio de Rodes (século III a.C.)

Atena e Hera pedem a Afrodite (vulgo Cípris) que induza seu filho, Eros, a flechar a heroína.

Tradução de Marcelo Cosentino

Pélias, o rei usurpador de Iolcos, foi amaldiçoado pela rainha dos deuses, Hera, por não lhe ter oferecido os devidos sacrifícios. Em profecia, ele é advertido de que sua derrocada virá por um homem sem uma sandália e, ao ver Jasão, o filho de seu meio-irmão Esão e legítimo herdeiro ao trono, descalço de um pé, decide enviá-lo a uma missão suicida: resgatar o Velocino de Ouro na ilha de Cólquida, governada pelo rei Aetes, pai de Medeia. Em troca, promete lhe entregar a coroa. Após uma odisseia pelo mediterrâneo, o navio de Jasão, o Argo, se encontra escondido num rio da Cólquida.

Venha, Érato, ó musa, junto a mim, e conte como Jasão trouxe de volta o Velocino de Ouro a Iolcos ajudado pelo amor de Medeia. Você compartilha o poder de Cípris e, através dos seus encantos, é capaz de enfeitiçar donzelas; portanto, a você é atribuído um nome que fala de amor.

Assim, os heróis aguardavam emboscados, flutuando entre grossos caniços, mas Hera e Atena os notaram e, apartadas de Zeus e dos outros imortais, entraram num quarto para deliberar entre si. Hera foi a primeira a interpelar Atena: “Dê-me você primeiro, filha de Zeus, algum conselho. Que fazer? Você seria capaz de elaborar algum estratagema através do qual eles consigam capturar o Velocino de Ouro de Aetes e trazê-lo à Grécia, ou acaso eles serão capazes de enganar o rei com palavras sutis e assim persuadi-lo? Ele é terrivelmente presunçoso. Ainda assim, não devemos recuar ante nenhum desafio”.

Imediatamente, Atena respondeu: “Também eu estava ponderando tais ideias em meu coração, Hera, quando você me perguntou. Mas creio que ainda não concebi um plano para auxiliar a coragem destes heróis, embora tenha considerado muitas possibilidades”.

Então a deusa, pensativa, fixou seus olhos no chão sob seus pés, e imediatamente Hera expôs seus pensamentos: “Venha, vamos falar com Cípris; nós duas iremos a ela e pediremos que mande seu filho disparar sua flecha contra a filha de Aetes, a feiticeira Medeia, encantando-a com amor por Jasão. E creio que através das maquinações dela, ele trará de volta o Velocino de Ouro à Grécia”.

A astúcia desse plano agradou a Atena, que respondeu com palavras gentis: “Hera, meu pai me gerou para ser uma estranha aos dardos do amor e eu não sei nada sobre sortilégios para despertar paixões. Se, porém, a conversa é do seu agrado, certamente eu a seguirei, mas você deve falar quando a encontrarmos”.

Então elas seguiram adiante, chegando ao magnífico palácio de Cípris, que seu marido, o deus manco, construiu para ela quando pela primeira vez a trouxe de junto a Zeus para ser sua mulher. Entrando na corte, elas permaneceram sob o pórtico do quarto onde a deusa preparara o divã de Hefesto. Porém, ele saíra cedo rumo à sua forja e à sua bigorna numa larga caverna em uma ilha flutuante, onde, através do sopro das chamas, forjou muitos artefatos curiosos, e ela estava sentada sozinha, em um assento lapidado de frente para a porta. Os cabelos cobriam seus ombros brancos de um lado ao outro como um manto. Ela os penteava com um pente dourado e estava a ponto de entrelaçar suas longas madeixas, mas, ao ver as deusas à sua frente, parou e convidou-as a entrar, e ergueu-se de seu assento, acomodando-as em divãs. Então, ela mesma se sentou e, com suas mãos, juntou as tranças ainda despenteadas. Sorrindo, dirigiu-se a elas com palavras astutas: “Queridas amigas, que propósito, que ocasião as traz aqui depois de tanto tempo? Por que vieram, outrora visitantes não tão assíduas, soberanas entre os deuses que são?”

Hera replicou: “Você zomba de nós, mas nossos corações estão agitados por calamidades. Pois agora mesmo no rio Fásis o filho de Esão ancorou o seu navio, ele e seus companheiros, em busca do Velocino. E eu o restituirei, ainda que ele tenha de navegar até o inferno para libertar Íxion de suas correntes de bronze, até onde houver força nos meus membros, para que Pélias não zombe por ter escapado a uma maldição – Pélias, que me desonrou ao não oferecer seus sacrifícios. Ademais, eu já queria bem a Jasão antes, desde que na foz do rio Anárus, durante uma enchente, enquanto eu provava a integridade dos homens, ele me encontrou ao retornar de sua caça. Todas as montanhas e os picos escarpados estavam cobertos de neve e, de lá, as torrentes se precipitavam com rugidos. Eu estava disfarçada sob a figura de uma velha decrépita e ele teve piedade de mim; erguendo-me em seus ombros, ele mesmo me carregou através das correntes furiosas. Por isso eu o honro sempre. E quanto a Pélias, ele não pagará a pena por sua profanação, a menos que você queira conceder a Jasão seu retorno”.

Cípris ficou sem palavras e, vendo os rogos de Hera, ela se espantou e, então, respondeu com palavras amistosas: “Deusa terrível! Que jamais se encontre alguém mais vil que Cípris, se eu desdenhar seu ardente desejo em atos ou palavras, seja lá como meus fracos braços puderem lhe servir, e que não haja nenhum favor em retorno”.

Hera mais uma vez falou-lhe com prudência: “Não foi em busca de coragem ou força que viemos. Queremos que, discretamente, você induza seu menino a enfeitiçar a filha de Aetes para que ela se apaixone por Jasão. Se ela o ajudar com seus conselhos, ele conquistará facilmente, creio eu, o Velocino de Ouro e retornará a Iolcos, pois ela é cheia de artimanhas”.

Então, Cípris disse às duas: “Hera e Atena, ele há de obedecer mais a vocês do que a mim. Mesmo sendo o insolente que é, estou certa de que, diante de vocês, alguma vergonha há de despontar em seus olhos. Por mim, ele não tem nenhum respeito e sempre me irrita. E exausta com seu atrevimento, tenho ganas de quebrar suas flechas e seu arco bem diante de seus olhos, pois, na sua irritação, ele me ameaça dizendo que, se eu não mantiver as mãos longe dele enquanto ainda domina seu gênio, terei motivos para me arrepender depois”.

As deusas sorriram e se entreolharam. Mas Cípris falou novamente, vexada em seu coração: “Para os outros, minhas tribulações são motivo de riso, e eu não deveria mesmo contá-las a todo mundo. Eu sozinha já as conheço bem demais… Mas agora, já que é do agrado de vocês duas, tentarei persuadi-lo, e ele não ousará me dizer não”.

Hera tomou sua delicada mão e, sorrindo, gentilmente respondeu: “Faça isso, Citereia, agora mesmo, como você disse. E não se irrite nem brigue com o garoto; ele não a aborrecerá depois”. Ela falou e se ergueu, e Atena a acompanhou. Elas saíram ambas com pressa, e Cípris seguiu seu caminho pelas veredas do Olimpo para encontrar seu filho.

Ela o encontrou no pomar verdejante de Zeus, não só, mas com Ganimedes, a quem Zeus, encantado por sua beleza, um dia trouxe para viver entre os deuses imortais. Eles estavam brincando com dados de ouro, como as crianças da mesma família costumam fazer. O ávido Eros, de pé, já segurava em sua mão esquerda um punhado deles, apertando-os contra seu peito, e nas suas faces frescas já despontava um doce rubor. Já o outro estava encolhido, duro, em silêncio e cabisbaixo, e só lhe restara mais dois dados, que ele lançou um depois do outro, irritado com as gargalhadas de Eros. Perdendo-os imediatamente para o colega, Ganimedes foi embora de mãos vazias, sem notar a aproximação de Cípris…