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A Descoberta da Infância

por Juliana de Albuquerque

Foi no século XVIII, a partir de um engajamento crítico com as ideias propostas por John Locke, que Jean-Jacques Rousseau formulou a noção que hoje possuímos da infância como um estágio privilegiado do desenvolvimento humano: a requerer proteção e cuidados específicos de modo a assegurar o pleno desenvolvimento do indivíduo.

As Meninas, de Diego Velázquez

Segundo Locke, a mente humana seria uma espécie de tábula rasa na qual o conhecimento seria impresso aos poucos, a partir da experiência que os nossos sentidos nos proporcionam. Locke opunha-se à tese das ideias inatas, ou seja, de que o homem já nasceria pronto. Assim, em Some Thoughts Concerning Education, ele escreve que as crianças careceriam de um tipo de instrução condicente com o seu estágio de desenvolvimento, tratando-se elas de “viajantes recém-chegados a um país estranho, do qual nada conhecem.”

Antes de Locke e Rousseau, alguns historiadores asseveram que as crianças eram vistas como adultos em miniatura, a partilhar de algumas responsabilidades semelhantes, a exemplo do trabalho, ainda que reconhecidas como menos versadas sobre a vida.

Ademais, o elevado índice de mortalidade infantil durante a Idade Média e início da Moderna inibia os adultos de formar laços afetivos mais estreitos com as crianças. Sobre esse aspecto, nos seus Ensaios, Michel de Montaigne reporta a perda dos seus filhos durante a mais tenra idade: “Eu perdi dois ou três filhos (…) não sem algum remorso, mas sem muito pesar.”

A ênfase de Locke na educação infantil reflete, portanto, uma gradual mudança das atitudes sociais da época em relação à infância. Assim, Philippe Aries, autor de Centuries of Childhood: A Social History of Family Life, comenta que, embora as sociedades europeias tenham começado a modificar suas concepções da infância a partir do século XIII — como bem demonstra o desenvolvimento da iconografia religiosa da época —, somente no limiar do século XVII os europeus passaram a demonstrar genuíno interesse pela graciosidade dos pequenos e por seus hábitos. Isso foi expresso pela literatura francesa do período, que passou a incorporar em suas criações determinadas expressões do vocabulário infantil, além de relatos entusiasmados sobre o desenvolvimento e o cotidiano das crianças.

No século seguinte, esse interesse pela infância ganhou contornos ainda mais definidos. Em 1762, Rousseau publica Émile, ou De l’éducation: tratado sobre a natureza e a formação do homem, a tecer críticas sobre um modelo de educação que não levava em conta as necessidades inerentes dos pupilos. Assim, adverte-nos o filósofo: “Não se conhece a infância; no caminho das falsas ideias que se têm, quanto mais se anda, mais se fica perdido. Os mais sábios prendem-se ao que aos homens importa saber, sem considerar o que as crianças estão em condições de aprender. Procuram sempre o homem na criança, sem pensar no que ela é antes de ser homem.”

Anos mais tarde, em 1782, a infância volta a ocupar Rousseau em sua autobiografia, a discorrer longamente sobre as experiências que moldaram seu caráter durante os primeiros anos de sua vida. Influenciado por essas leituras, J. W. von Goethe tornou-se o preceptor do filho de sua velha amiga Charlotte von Stein. E, embora a experiência não tenha dado muito certo, a preocupação com a infância ganha um lugar de destaque em obras como Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meisters (Wilhelm Meisters Lehrjahre, 1795).

Nesse mesmo período, surgem os primeiros livros para o público infantil, ao exemplo de manuais de conduta e abecedários, escritos de forma simples, com o objetivo de inaugurar um diálogo entre o pequeno leitor e o pensamento da época. Dentre esses textos, destaco: Neues ABC Buch, welches zugleich eine Anleitung zum Denken für Kinder enthalt. Escrito por Karl Philipp Moritz em 1794, em rimas e com ilustrações, esse compêndio estimula o interesse por alguns preceitos iluministas sobre a autonomia individual, o lugar do homem no mundo e a relação entre a natureza e a cultura.

Aqui, se faz interessante notar como a primeira ilustração do texto retrata um olho humano: Auge, em alemão. Dando-nos a crer que será a partir da visão que o conhecimento da natureza e da realidade humana poderá ser adquirido e organizado. Já as outras cinco primeiras ilustrações representam os demais sentidos: olfato, paladar e tato. Ao elencar as mais variadas experiências que a criança pode acumular em seu cotidiano, o texto provoca a reflexão sobre como os sentidos se completam: “Os olhos abertos enxergam o livro (…) O que eu leio com os olhos, posso escutar com os ouvidos”. Apresentados os sentidos, Moritz introduz a criança ao conhecimento de conceitos abstratos, como o espírito — Geist — que anima o corpo e nos permite refletir sobre as nossas ações: “O pensamento é prazeroso. Eu sempre quero pensar no que faço.”

Ora, por mais aguçados que sejam os nossos sentidos, nem tudo o que desejamos conhecer é-nos imediatamente acessível. Assim, Moritz nos ensina que, para reconhecermos as letras do alfabeto, precisamos treinar a nossa visão. Isto é, expandir os limites da sua aplicação. À medida que exercitamos os sentidos, nosso pensamento também adquire maior complexidade: começamos a questionar tanto o que temos por certo diante dos olhos como o que nos permanece invisível; tal é a vasta topografia da nossa vida interior.

Esse tema veio a ser resgatado pela psicanálise na literatura do início do século XX, a exemplo das reflexões inspiradas pelas obras de Sigmund Freud: responsável por nos chamar a atenção para as características infantis que habitam alguns dos mais insondáveis recantos da mente adulta. Por exemplo, a carência de que padecemos por autoridade, acolhimento e proteção – que se expressa tanto em nosso comportamento sexual como na maneira pela qual nos relacionamos em sociedade. Do que podemos concluir que a gradual descoberta da infância pela nossa cultura traduz-se em uma maior compreensão da própria humanidade.


Originalmente publicado na edição Infância
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