No meu quarto tem um espelho. Eu olho de frente e, em vez de uma, são duzentas, duzentas e vinte imagens. Vejo as vencedoras e as perdedoras, as belas e as cegas, as certezas e o futuro. Vejo quem eu nem reconheceria. Uma senhora de noventa e sete anos tenta pegar um copo d’água, as mãos finas mal alcançam. As mãos finas são as minhas. Vejo ainda uma criança, loira. Espera. O que meu nariz está fazendo na cara dela? Ai, se eu pego essa menina. E de pensar que uma das duzentas, duzentas e vinte, a pior delas, seria capaz de maltratar uma criança.
Lá no fundo estão a enfermeira, a policial, a louca e a assistente social. Todas conversam com a que queria maltratar uma criança. Facilmente a dissuadem. A executiva politicamente correta, bem na frente, aplaude. Eu tenho medo de tanta gente. Eu tenho medo das que duvidam de mim. Eu tenho medo das que me incentivam com segundas intenções. Eu tenho medo de mim. Preciso saber falar tantas línguas que até do código masculino preciso entender (umas quarenta, quarenta e cinco imagens são de homens). Eu olho no espelho todo santo dia e nenhuma delas parece morrer. Pelo contrário, algumas acreditam em espíritos, o que só multiplica a multidão multidisciplinar. Duas ou três rainhas (sendo uma africana), guerreiros, Mata Hari, um médico chinês, camponeses, Cleópatra e uma etrusca sonhadora usando brinco de ouro. Tento buscar a escritora, o guru, o anjo decaído, a centrada, a dançarina, a deusa do prazer. Eu tenho medo de não agradar os que tanto gosto. Sei que todos estão lá e mando mensagens. Um beijo, uma piscada, uma oração, um poema, uma dúvida. À noite, apago a luz e meus sonhos continuam conversando com o bendito especulador. O que me vê. O espelho. O que me dá medo.
O espelho
por Nuria Basker