Há alguns anos, quando não sabia ao certo para onde ir, ouvi de um amigo sobre a tradição de certa tribo africana. Os mais velhos se reúnem com quem está se sentindo perdido e começam a chamá-lo por seu apelido de infância – todos na tribo têm um. Recordam juntos momentos marcantes da vida daquela pessoa, trazendo à tona memórias afetivas de sua história. Quando um não sabe para onde ir, é preciso lembrar de onde veio.
Da mesma forma, quando não sei ainda para onde um texto irá me levar, recorro ao velho hábito de consultar dicionários e buscar pela etimologia das palavras. Foi assim também com o “masculino”, mesmo que hoje seja muito difícil decidir onde buscar definições para este adjetivo que a cada dia se apresenta mais complexo.
Mas.cu.li.no (mɐʃkuˈlinu): adjetivo.
1. relativo ou pertencente a homem;
2. relativo ou pertencente a macho;
3. Botânica: diz-se da flor que possui apenas estames;
4. Gramática: diz-se do gênero gramatical que se opõe ao gênero feminino ou aos gêneros feminino e neutro; e
5. relativo a comportamento ou aparência tradicionalmente associados aos homens.
Mesmo sendo o dicionário de edição recente, suas definições não me satisfizeram. Recorri então às estruturas da psique observadas pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, autor da psicologia analítica, segundo a qual os princípios psicológicos do masculino e do feminino exercem papel fundamental na constituição da natureza humana e no seu processo de desenvolvimento.
Todos nós, humanos, temos presentes em nossas personalidades ambos os aspectos, contrapostos e bem definidos. Da tensão entre esses opostos surge nossa capacidade e potencial de crescimento. Do convívio harmônico das potencialidades do masculino e do feminino emerge nosso potencial criativo, nossa oportunidade de cocriar nossa própria identidade. Um “eu” maior, capaz de reconciliar esse casal invisível do nosso inconsciente pessoal, ampliando nossa consciência e percorrendo o caminho que Jung nomeava individuação, o encontro profundo com nossa essência, única, indivisível.
Jung reconhece as qualidades psicológicas femininas inconscientes que o homem possui, assim como as masculinas possuídas pela mulher. Enquanto o aspecto feminino em nós é o que tem contato com nossas emoções, o que nutre, cuida, acolhe, o aspecto masculino é o da lógica, da racionalidade, é o que estabelece as regras, as leis e a ordem – o código de Hamurabi é um dos conjuntos de leis escritas mais antigos e bem preservados da nossa história, elaborado por volta de 1772 a.C., na Mesopotâmia. Recomendo uma busca pela imagem desse monumento, talhado em pedra, que ora se encontra no Museu do Louvre, em Paris. Ele fala por si só.
Jung atribuía ao princípio feminino nossa capacidade de seguir a vida aceitando mudanças, com confiança, segurança e esperança diante dos encerramentos de ciclos e renascimentos que formam nossos aprendizados. Ao masculino, nossa capacidade de tomar decisões, de ser independente e de nos tornar agressivos e competitivos, mas também responsáveis, provedores, figuras de autoridade. É o princípio que nos guia para separar o bem do mal, o certo do errado, o permitido do proibido, não só ditando disciplina e ordem, mas também criando e colocando limites para nós mesmos e para os outros.
No passado, o conflito mais comum entre esses princípios se dava em nossa cultura, na dificuldade e até mesmo na proibição de que os homens acolhessem e lidassem com seus aspectos femininos e as mulheres o fizessem com seus aspectos masculinos.
Hoje, com uma melhor compreensão sobre a diversidade de gêneros, ainda que engatinhando, já é possível observar e lidar melhor com os potenciais positivos e negativos do feminino e do masculino. Não se pode fazer referência a um sem o outro.
As réguas da masculinidade são o sucesso, o poder, a admiração que uma pessoa provoca – ela busca ser independente, audaciosa, agressiva, capaz de tomar riscos e decisões importantes. Como natural decorrência dessas qualidades, colhemos a violência pessoal e coletiva, a competição desenfreada e sem propósito, o estresse, a obsessão pelo alto desempenho.
Essa masculinidade é constantemente ameaçada pela intimidade, pelo sentir, chorar, pela afetividade característica do feminino. Proibido, ponto de fraqueza, a ausência do feminino torna a pessoa incapaz de se entregar a uma relação verdadeira.
A redução do mundo dos afetos ao sexo permite o jogo da sedução, mas evita o envolvimento, o compromisso, produzindo parceiros-objetos, quaisquer que sejam suas naturezas biológicas, gêneros ou opções sexuais.
A ausência do feminino nos distancia da natureza, dos instintos, da intuição. Perdemos a alegria de viver, a confiança na vida, a oportunidade de lidar com incertezas, com o imponderável. Já a ausência do masculino nos leva a um atoleiro de emoções que nos confunde, nos impede de agir racionalmente, facilmente nos deixando mais melindrados com tudo e todos, reagindo com mais sarcasmo, jogando indiretas ao invés de objetivar a situação ou experiência que vem sendo vivida.
Essa busca não deve ser de um em detrimento do outro, mas sim da presença marcante de um e de outro, em diálogo e não em competição. É preciso ser masculino e feminino para ser humano. Tarefa simples de ser escrita, uma epopeia a ser vivida, muitas vezes conflitante com nossa natureza biológica e cultural. Trabalho para corajosos ou loucos que se aventuram na jornada do autoconhecimento.
Comecei este nosso diálogo no subsolo de minha casa, já que, por conta do confinamento imposto pela Covid-19, minha esposa se estabeleceu no meu escritório e consultório para realizar suas videoconferências de trabalho, o que é a própria síntese do que tento compartilhar agora.
No campo psicofilosófico a que me atenho, veja bem – a que me atenho -, cor, preferência(s) sexual(is), prática(s) (ou não) religiosa(s), dietas, estilos de se vestir ou falar pouco ou praticamente nada importam. Muito pelo contrário, quanto mais diversos, mais ricos, mais elucidativos, mais humanos.
Mesmo assim, me sinto de alguma forma preso, ao escrever, pelas estúpidas amarras a que estamos nos permitindo ser atados. O sofisma já se inicia quando julgamos que possa existir uma forma única possível de agradar a todos.
Portanto, balela! É praticamente o mesmo dilema da porta: eu gosto de abrir portas: do carro, da casa, das salas, do elevador, quer seja para mulheres, homens, trans, homos, héteros, jovens, idosos, atletas, amorfos, pretos, brancos, amarelos, vermelhos ou verdes.
Sinto-me bem explicitando minha reverência ao outro. Faço isso sempre. Muitos gostam; outros, não, se sentem mal, ofendidos ou subjugados. Discordo, mas respeito, porque o que eu penso sobre o outro é irrelevante. O que ele sente é o que existe quando se propõe de fato a uma conexão com o outro. Mas sempre corro o risco de abrir a porta, observando a reação, que definirá se continuarei ou não a abrir portas para este um específico.
Já percebeu o tamanho da minha encrenca? No mundo machista, sou excessivamente gentil, talvez falso ou até mesmo efeminado. No feminista, subjugo a força e a independência das mulheres. Porém nada me impediria de ser eu mesmo.
Voltando ao meu subsolo, vamos recuperar a imagem da minha esposa trabalhando no meu escritório enquanto eu me exilo no subterrâneo de nossa casa. Precisei descer e me trancar nesse pseudoútero para fazer parir essas ideias que queria compartilhar.
Se no passado a singularidade dos modelos de homem, mulher, pai, mãe, masculino, feminino, nos oprimia e amputava, a pluralidade atual mais confunde do que nos orienta. Oscilamos do masculino para o feminino, da norma rígida para a ausência de regras e ordem.
Estamos vivendo uma grande carência de modelos. Modelos de ser humano no século XXI, em busca de mais e melhor integridade, de jogar fora rótulos sob os quais políticos e marqueteiros hoje deitam e rolam, enquanto a natureza e o desenvolvimento humano choram por abandono.
Ser íntegro, ou buscar integridade, é buscar por completude, totalidade, consciente e inconsciente, individual e coletiva, bonita e feia, feminina e masculina. É buscar tornar-se um indivíduo: aquele que não se divide, que não se pode dividir.
Termino agora, já de volta ao meu escritório, em domingo ensolarado, porque preciso preparar o almoço de dia das mães. Em homenagem a elas, quem cozinha aqui em casa, todos os dias, sou eu.