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Pais astronautas, pais soldados

por Rafael Kasper

Eu vivo a 11.000 quilômetros do meu pai. Quando me mudei para Berlim, meu pai se tornou memórias e afetos dispersos em imagens e sonhos, um homem cuja voz, cada vez mais lenta, escuto em ligações de WhatsApp uma vez por mês. Depois de um ano e meio, visitei o Brasil e reencontrei um pai diferente do que havia me despedido, com pele mais murcha, barba branca em expansão irregular pelo rosto, olhos avermelhados e vazios, e espírito mais abatido pelas crises profissionais e existenciais dos últimos anos. 

Ad Astra, de James Gray

Como foi que meu pai se tornou esse corpo com pouca vida? Com essa pergunta, embarquei no voo Porto Alegre-Lisboa e comecei a assistir Ad Astra (James Gray, 2019). No filme, o major Roy McBride (Brad Pitt) viaja até Netuno para localizar o astronauta H. Clifford McBride (Tommy Lee Jones), seu pai e líder do Projeto Lima, cuja missão era buscar novas formas de vida no espaço. O projeto fracassou, Clifford está sem contato com a Terra há 30 anos, e cientistas suspeitam que sua estação em Netuno seja a causa de circuitos explosivos que ameaçam o sistema solar. 

A ida às estrelas é um percurso físico (pela Lua, por Marte, pelas novas fronteiras humanas na galáxia, por meio da adaptação tecnológica do corpo – Roy é o astronauta que se mantém “calmo, estável”, mesmo em queda livre), com metas objetivas (encontrar Clifford, destruir o Projeto Lima, estabilizar a vida na galáxia), mas também é uma ida ao interior, expedição subjetiva na qual Roy se confronta com o homem que se tornou (firme, voltado ao “essencial”, ele rompe com a esposa, Eve (Liv Tyler), para se dedicar apenas à ciência espacial). É, também, uma jornada de desconstrução do pai. Durante a viagem, a imagem do astronauta-pai começa a naufragar, de mártir da expansão interestelar a egocêntrico desequilibrado, preso num projeto frustrado, incapaz de retornar à Terra e colocar os pés no chão da vida pessoal e familiar.     

Durante o filme, lembro a frase dita por um amigo, dias antes, em Porto Alegre: “Fazemos terapia porque nossos pais não fizeram”. Teria Freud salvo meu pai? Talvez, se a missão de resgate psicológico envolvesse um freudianismo que enfrentasse os ideais formadores, e depois deformadores, da vida do meu pai: o homem produtivo, bem-sucedido, masculinizado pelos assuntos que pode (deve) falar (futebol, mulheres, talvez política) e pela supressão das fragilidades, dos sinais do feminino, das mensagens enviadas pela subjetividade em busca de ajuda. 

A compreensão de Clifford McBride passa pela viagem ao futuro e pelo questionamento do homem heroico, do astronauta norte-americano lançado ao espaço sideral, fugindo do espaço privado, do filho e da mulher, substituindo as frustrações das tarefas pessoais com uma grande tarefa histórica. No caso do meu pai, a compreensão teria que viajar ao passado e ao modelo de formação do homem segundo o germanismo carregado no nosso nome e encenado nas imagens fundadoras da família Kasper (a bisavó captura ratos em armadilhas improvisadas e arranca o rabo dos bichos com a própria mão, bate com cinta nas costas do meu avô e o tranca num quarto escuro por mau comportamento, e meu avô se torna silencioso, nem autoritário nem amoroso, refletido na incapacidade do meu pai de elaborar suas emoções).

Em Berlim, cidade das contradições alemãs, eu penso no meu pai enquanto vejo Frederico, o Grande, marchando eternamente no cavalo de bronze no meio da Unter den Linden. Aqui, pai e filho também habitam as lendas fundadoras. Berlim está devastada, metade da população foi queimada viva ou atirada no rio em guerras religiosas, e a dinastia dos Hohenzollern decide estabilizar e reconstruir a cidade. Dos escombros e da fome, Berlim se reergue como centro da Prússia. O contrato social se internaliza por meio do comportamento e da obediência dos súditos. O pai célebre dos Hohenzollern é Frederico Guilherme I. Ele se torna o Rei Soldado, criador do Estado em que 80% das receitas vão para armas e guarnições. Transformou a Prússia, principal força na unificação da Alemanha moderna, em “um exército com um Estado”. Disse que não olhava para mulheres, apenas para soldados altos: quando encontrava um, queria vê-lo com a farda da Prússia. 

Talvez as relações entre pais e filhos passem por planos frustrados e ideais desconstruídos. Em Berlim, o Rei Soldado cria a Prússia militarizada, mas não provoca guerras. Gosta demais do seu exército para induzi-lo à morte. Tenta incutir a masculinidade prussiana no filho único. Mas o filho do Rei Soldado prefere canções a canhões, e garotos a garotas. O pequeno Frederico se esconde embaixo da cama com medo do pai. Quando jovem, reúne os amigos – apenas garotos – para tocar flauta e recitar poesia. O rei invade o quarto, acaba com o recital, joga os poemas no fogo da lareira. Então, o jovem ama (fisicamente) um de seus amigos, e o pai manda executar o amante. Aqui, as tensões psicológicas começam a agir na história: o jovem Frederico se casará por aparência, não terá mais amantes homens, continuará lendo filosofia e poesia (se tornará o Rei Filósofo), mas começará guerras, contra a França, contra a Áustria etc., “escrevendo poemas de noite e liderando batalhões de dia”. Ele havia se tornado rei com ambição e, como se dizia em Berlim, “sem coração”. 

Depois da Segunda Guerra Mundial, em decreto de fevereiro de 1947, os países aliados decidiram abolir o nome Prússia, tida como núcleo do “militarismo e da reação na Alemanha”. Hoje, do Estado histórico Prússia-Brandemburgo, resta apenas o nome oficial Brandemburgo, região que circunda Berlim. Mas o que restou da Prússia mental? Como mapear e identificar, como tentar conter ou abolir a Prússia comportamental, a Prússia da vida controlada no relógio, da obediência sem crítica, da etiqueta à mesa sem debate ético na rua, do medo de expressar o que não está nas convenções, mas está na realidade dos nossos corpos, desejos, pensamentos? 

Sobrevoando o oceano em direção à Alemanha, com as estrelas acima de mim, eu viajo por esses símbolos e mandamentos de um masculino em declínio, passo pelos astronautas e soldados que viveram suas funções sem viver suas emoções, pela educação inflexível destinada a formar um homem ideal, mas não um homem humanizado, liberado para descobrir e explorar seu universo interior. Então, eu chego de volta ao meu pai, e percebo a distância entre ele e o que ele poderia ter sido, se as missões impostas por seus modelos formadores tivessem sido mais leves e mais livres.