Complexo de Wunderkind e outros poemas inéditos
Diretamente da capital mexicana, onde ministra a cátedra José Saramago, na Universidade Autônoma da Cidade do México, o poeta e professor Horácio Costa nos apresenta três poemas inéditos, exclusivos para a edição Barroco da Amarello.
COMPLEXO DE WUNDERKIND
Deixe a vida me levar, disse
Zeca Pagodinho, ou terá dito: levar eu,
é a mesma coisa pois, a mesma
entrega ou certo providencialismo
e se o for, ora, há um extrato bem
católico e mesmo cristão: que nos
leve a torrente bem lavados pela
encosta do monte, Alpes ou vulcão:
que de água se trate ou lava
do momento, que venga el toro,
a vida, que recusa não-aceitações
ou parciais muxoxos: só vale
se for entrega, se não se exigir
recibo, assim é que ela gosta?
Sim: esta a resposta. Se houver êxtase,
melhor, se demasia, ainda +.
Este o princípio dos dervixes
que giram como os planetas, sempre
tão comportados em suas previsíveis
moções que significam o tempo e
conversam com a viagem da luz.
Quem entende esta mecânica básica,
não nos importe a idade, é Wunderkind,
menino, menina ou menine
prodígio ou mozartiano inventor
de musicais harmonias: observe-se
o seu piruetar frente ao teclado
e a dança do rabicho de seus cabelos
presos com uma fita de veludo carmim:
músico ou Pan? Enquanto nos fascina
séculos afora.
Mas que tal condição não se alicerce
em hábito ou indisciplina contumaz:
sem o senso do risco que se toma,
torna-se a entrega à vida mero
Complexo de Wunderkind. Pagar-se
é possível, é do arbítrio de cada
quem e válido a cada hora, mas
nesse caso normalmente o preço
é da criança a morte.
Cidade do México, 16 X 21
LE SOIN DE SOI-MÊME
O corpo foi inventado no século XVII
quando deixou de pertencer a Deus.
O corpo não apenas tem 400 anos:
é criança, engatinha, conversa consigo
tatibitate, repete fluxos e frases
até desinventá-los, e reage:
o corpo lava-se e lava a alma,
exulta e sofre, e à erosão programática
do real filho de Deus: o Estado.
E pensa que pode ser mais ele mesmo
se antes que à sua servidão cuidar de si:
tais as armadilhas da história e da fé
cega faca amolada: inverter os botões:
se o avesso é fora tudo mudará, se eu
propuser, o delírio se retroalimenta
como um cão que a si se persegue
em círculos, e pára quando exausto
não se reconhece no espelho e late.
Autômato de si, por irromper apenas
pensa o corpo poder não esperar.
Fora do tempo: enxuto como se
não lhe molhasse a água ou a noite
se detivesse ou o dia ou a hora.
Lava a cara, menina suja, mantém
colada no palato a hóstia, trabalha
e fala, fala e trabalha. Não há vida
fora dele, mas história há e sempre.
CDMX 27 X 21
CUM DEDERIT DILECTIS SUIS SOMNUM
Pois ele dá aos seus diletos o sono
e mais do que isto: também o gosto
por escrever poemas aos borbotões
e com títulos em línguas estrangeiras
assim como uma frase que soe em latim
só que contrária ao engomado semissolene
de uma missa idem; o sono a todos, mas xi,
não o ventre: só às diletas, ça fait bien
une différence. Mas e eu com isso de frutos
semissagrados? Metanarrativas com as quais
faço eu fazemos nós o que quisermos,
inclusive desenvolver a proclividade
de escrever de poliamor homossexual
em textos experimentais como o presente,
onde se adaptam as ditas Escrituras a uma pauta
a elas posterior e de realidades cotidianas:
quando a palavra do Senhor e a minha
disputam em cabecinhas retroformatadas
o programa da poliescritura que não dispensa
nem necessita das irmãs gêmeas hermenêutica
e patrística para uma leitura econômica:
direta ao agora, no qual entreteça-se
o texto herdado e o por herdar-se.
Afinal, por que pensar o amor sempre
como concessão e não conquista? Se
dileto sou e formos, o sono dá-me
Senhor, mas não para dormir o seu
sonho, e daqui para a frente o nosso.