Incorporar para transformar: a arte em escala pública
Amarello Barra Funda recebe obra da artista Gabriela Machado em seu espaço em São Paulo.
A parede como uma tela efêmera e o espaço, seja ele qual for, como a provocação ao devir artístico que pode surgir entre ambos — a isso, damos o nome de Arte Mural. Esse tipo de produção se alicerça em duas potências: incorporar e transformar. A primeira, diz respeito à incorporação atenciosa das características do local; a segunda, refere-se à transformação dos seus arredores em novas possibilidades e oportunidades de contemplação. Quando se somam, temos como resultado uma ode à impermanência e à especificidade, sempre contempladas nas confabulações de um projeto de mural.
Para contarmos com a visão de alguém que recentemente pensou e produziu seu trabalho em uma escala pública, conversamos com Gabriela Machado, artista convidada da Revista Amarello para realizar o projeto do mural no novo espaço Amarello Barra Funda.
“Acho muito importante que a arte esteja em espaços urbanos, onde as pessoas possam passar por perto, contemplar, trazer para o dia a dia, e ter surpresas.”
Gabriela Machado
Um aspecto particular do muralismo, e que faz dele um processo criativo tão especial, é sua ligação profunda à arquitetura, ao urbanismo, à paisagem de onde está e não pode sair, é o que faz com que ele se misture verdadeiramente aos ares que sopram sobre sua presença. Por mais que tente, esse tipo de pintura não acaba em si mesma e, no final das contas, todas as suas partes viram partícipes: a obra interage com o espaço, o espaço interage com a obra; as pessoas se relacionam com os dois, os dois se relacionam com as pessoas. O consumo de arte que vem dessa interlocução é democrático e naturalizado, despertando uma fuga orgânica da arte-avalanche decorrente da publicidade e da arte-Steve-Jobs existente no design dos nossos gadgets.
“Os meus trabalhos não têm um projeto a priori. Meu trabalho se inicia a partir de um esboço. Ele anda sozinho, pela pintura. Quando começo e entendo o espaço, e isso precisa de fato estar no processo da própria pintura, ela se dá pelo andamento dela mesma.”
G. M.
Há, no audiovisual, uma técnica de edição chamada “efeito Kuleshov”, concebida no início do século XX, nos primórdios do cinema. Imagine gravações de um homem fazendo a expressão mais neutra possível e, então, intercale isso com imagens totalmente distintas entre si, cada qual com tema e tom próprios. Se depois da expressão neutra do homem houver um corte para a janela do quarto de uma jovem trocando de roupa, descreveremos esse homem como pervertido; caso depois da mesma expressão neutra cortarmos para um golden retriever esbanjando fofura, teremos do homem uma boa impressão. Os resultados dos estudos de Lev Kuleshov, em suma, foram: o contexto interfere mais nas nossas interpretações do que imaginamos, sendo capaz de mudar totalmente o sentido das partes de um conjunto, ainda que as partes per se não se alterem. Essa lógica também se aplica aos murais.
“A escala pública é fundamental, porque você [artista] pode interagir com aquele espaço. O meu trabalho, hoje, vem de uma experiência do dia a dia. Me tornei uma artista que gosta de fazer residências fora do país, justamente para me colocar em situações fora do meu lugar de conforto e criar novos valores, conceitos e olhares para a minha pintura, porque ela vem da vivência do entorno.”
G. M.
Da fugacidade intrínseca à Arte Mural, tira-se uma aura poderosa. Ela não vem ao mundo em busca de qualquer perenidade, muito pelo contrário: pretende, a partir de sua momentaneidade, reverberar com ainda mais força. Estabelece-se, assim, um diálogo com nossas experiências pessoais, com aquela noção comprovada empiricamente de que, por vezes, o que dura menos impacta mais. Em um mundo cada vez mais transitório e difícil de se ter em mãos, a intensidade é uma das maiores formas de poesia. É como os versos de Vinicius de Moraes — “Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”. Cada mural é uma chama eterna em sua própria efemeridade.
“Acho que pelo fato da nossa vida ser corrida e instável, de estarmos totalmente consumidos pelo celular, pelo computador, pelas mídias, a gente deve criar um tempo de contemplação. É indispensável que a gente tenha isso hoje, porque é a forma mais natural de você alimentar a sua mente, de você trazer frescor à sua vida, porque a contemplação faz isso — traz o frescor que te coloca em outro lugar.”
G. M.
Exemplo tanto do poder transformador de um contexto quanto da intensidade da Arte Mural é o México do começo do século XX, que vivia um momento conturbado de sua história, andando sobre brasas ditatoriais acesas depois da Revolução. Com Porfírio Diaz no poder, criando um cenário político-social que influenciava a leitura de qualquer arte presente em espaços públicos, o muralismo muniu-se das potências da incorporação e da transformação para se tornar o principal meio de elaborar uma arte popular e engajada. A voz da resistência e da oposição enfim se fazia ouvir. Ao encontrar uma forma bem mais coletiva de ressoar, em especial nos trabalhos de Diego Riva, essas manifestações geraram questionamentos em larga escala por chegar a quem mais importava: as pessoas.
“Acho que isso [tempo de contemplação] resume tudo quando você fala em pintar um mural em uma escala pública. É muito importante, até para facilitar a contemplação do espectador, porque ele vai passar ali e não vai ter como não olhar aquilo. É uma forma de trazê-lo para perto.
G. M.
Os murais estão conosco, em escala pública, no espaço Amarello Barra Funda e em tantos outros lugares. Contemplemos com intensidade.