ArteCinema

O legado de Sidney Poitier

Sim, talvez existissem presenças negras poderosas nas telas antes de Sidney Poitier — como o ator, musicista, atleta e ativista social Paul Robeson, que brilhou no começo do século XX em tudo que se meteu a fazer —, mas, até Poitier aparecer, não havia em toda Hollywood um protagonista negro que encabeçasse as produções com as maiores bilheterias, capazes de dar inveja a qualquer James Stewart ou John Wayne. Peguemos o ano de 1967 como referência: com Adivinhe Quem Vem Para Jantar e Ao Mestre, Com Carinho, o ator protagonizou dois dos filmes que mais arrecadaram naquele no ano — além de, claro, estrelar ao lado de Rod Steiger o vencedor do Oscar de Melhor Filme, o clássico No Calor da Noite. A euforia incontida com a qual subiu as escadas para receber a estatueta honorária da Academia, em 2002, deixa claro que, quando falamos seu nome, falamos de alguém cujo impacto ultrapassa gerações e vai além do cinema.

Nas entrevistas que formam a espinha dorsal de O Legado de Sidney Poitier, documentário assinado pelo cineasta Reginald Hudlin, Poitier compartilha suas origens em Cat Island, nas Bahamas. Depois de nascer prematuramente, com apenas sete meses de gestação, seu pai estava prestes a enterrá-lo em uma caixa de sapatos, pronto para acabar com o sofrimento do bebê. Foi sua mãe que, num ato de desespero, o convenceu a mudar de ideia, indo atrás de um vidente, que garantiu ao casal que, apesar das dificuldades iniciais, seu filho mais novo teria um futuro brilhante. “Não esperavam que eu sobrevivesse” é a primeira frase que ouvimos ecoar do ator, que nos deixou em janeiro de 2022, com 94 anos de idade. Saber que deveria ter morrido em seus primeiros meses de vida o levou a viver com entusiasmo.

Advinhe Quem Vem Para Jantar (1967), de Stanley Kramer. Sidney Poitier em cena com Spencer Tracy, Katharine Hepburn e Katharine Houghton.

No filme da Apple TV+, é ele, mais Sidney do que Poitier, que conta a sua própria história. Ao lançar mão de imagens históricas e do forte voice over proporcionado pelo ator — fruto de uma entrevista de mais de sete horas que a produtora do filme, Oprah Winfrey, conduziu com ele em 2012 —, Hudlin faz com que a narrativa seja sobre o homem, e não apenas sobre seus feitos. Por mais impressionantes que sejam os capítulos passados em revista, tudo ganha mais vida e intimidade relatados pela pessoa que os viveu. É guiado pela sua voz, marca registrada da sua carreira — impossível não lembrar dele vociferando “They call me Mr. Tibbs!” —, que temos contato com sua história pré-holofotes, vivendo sem eletricidade nas Bahamas. É assim que descobrimos como, num ambiente em que estava cercado de pessoas negras, aquele pequeno menino cresceu sem se importar com a cor de sua pele; e é assim que nos condoemos ao saber como essa realidade caiu por terra quando, na adolescência, se mudou para os Estados Unidos.

No Calor da Noite (1967), de Norman Jewison. Sidney Poitier em cena com Lee Grant.

A cor de sua pele, é verdade, importava. E importava muito. Contra uma indústria que tinha o costume de bater as portas na cara de quem quer que desafiasse o seu establishment, construiu uma invejável carreira numa Hollywood dominada por brancos. Quebrando todas as barreiras que viu pela frente, viu o início de sua ascenção pelos meados de 1955 e, já em 1964, se tornou o primeiro ator negro a ganhar o Oscar de Melhor Ator por sua atuação em Uma Voz nas Sombras, filme de Ralph Nelson em que Sidney interpreta um trabalhador que por um acaso acaba num convento de freiras convictas de que ele foi enviado ali por Deus para construir uma capela. O auge veio em 1967, com um rol de marcos nunca antes vistos, por qualquer ator ou atriz.

Em ensaio para a Vanity Fair, em 2014. Créditos: Larry Busacca.

Mas há quem questione: afinal, qual foi o público que Sidney Poitier encantou? Greg Tate, crítico cultural que aparece no documentário, diz que “seus filmes não foram feitos para negros”. Sua linha de raciocínio é a de que as narrativas dos filmes que Poitier protagonizava eram feitas para o público branco, muitas vezes atenuando cortes profundos e mastigando demais questões complexas de serem engolidas. No entanto, em linhas gerais, O Legado de Sidney Poitier argumenta que esses filmes foram pioneiros em retratar a humanidade das pessoas negros. Era a revolução possível de então e representava pequenos passos para um futuro mais diversificado. 

De um jeito ou de outro, a verdade é que há filmes que não foram bem recebidos pelo público negro. Em particular, há uma cena do filme Acorrentados, de 1958, que até hoje ressoa com polêmica. Dirigido pelo cultuado diretor Stanley Kramer, acompanhamos a história de dois prisioneiros fugitivos, um negro (Poitier) e outro branco (Tony Curtis), que, acorrentados um ao outro, tentam escapar de seus perseguidores e de suas próprias diferenças. Levanta-se debates realmente corajosos à época, em especial para a indústria conservadora em que o filme acontecia, mas, ao fim dos quase 100 minutos do filme, por motivos que a trama assenta bem aos espectadores, Poitier dá as costas à sua própria liberdade ao pular de um trem para ajudar Tony Curtis. 

Cerimônia dos prêmios Oscar de 1964. Gregory Peck, French actress Annabella, Sidney Poitier e Anne Bancroft.

Embora o documentário explore a recepção polarizadora de Poitier dentro da comunidade negra, especialmente nos já citados Acorrentados e Adivinhe Quem Vem Para Jantar, ele o faz apenas fugazmente. O próprio ator fala sobre sua reação a um artigo do jornalista Clifford Mason intitulado Por que o público branco tanto ama Sidney Poitier?, publicado no The New York Times em 1967. Nele, Mason descreve “a síndrome de Sidney Poitier: um cara legal em um mundo totalmente branco, sem esposa, sem namorada, sem mulher para amar ou beijar, ajudando o homem branco a resolver o problema do homem branco”.

Acorrentados (1958), de Stanley Kramer. Em cena com Tony Curtis.
Em 2009, Sidney Poitier recebe a Medalha Presidencial da Liberdade do então presidente Barack Obama. Créditos: J. Scott Applewhite.

Se há alguma verdade na acusação de que seus personagens eram excessivamente perfeitos para serem seguros para o público liberal branco, o ator e ativista não parece perfeito da maneira como é retratado em O Legado de Sidney Poitier, que faz com que se reconheça, pela força de sua narrativa, por que a sua história da vida foi, e ainda é, tão importante. Desde a invenção do cinema, as imagens degradantes de pessoas negras eram constantes — lembram do seminal O Nascimento De Uma Nação, de D.W. Griffith, até hoje visitado por estudantes de cinema? 

Pois bem, Sidney Poitier destruiu essas representações com páthos, intensidade e uma vontade de transformar. Filme após filme, mudou o curso da história de Hollywood e, a partir daí, mudou também um pouco da história do mundo.