Amarello Visita: Ómana e suas rendeiras
A precisão e a preciosidade dos têxteis brasileiros.
Renascença, labirinto, filé, redendê, boa noite, singeleza… O que essas palavras têm em comum, além de serem encantadoras? São técnicas têxteis que compartilham suas origens europeias, mas que encontraram no Brasil a potência e a criatividade para criarem-se novas no trabalho de milhares de rendeiras, bordadeiras e tecelãs.
Os têxteis tradicionais brasileiros, que resistem hoje especialmente em territórios nordestinos, rurais, são reconhecidamente ofícios femininos e domésticos. Em localidades que têm essas produções como principal fonte de renda e expressão cultural, é no cotidiano silenciado do lar, entre uma tarefa e outra, que as construções tão admiradas se dão. A cada nó cruzado na linha forma-se a estrutura que acarinha e sustenta toda a família.
Nas histórias de vida compartilhadas, aos poucos entendemos o espaço central que esses ofícios ocupam na construção econômica, social e cultural das artesãs. Eles apareceram para elas, desde a infância, como oportunidade de fazerem-se independentes, de circularem e conhecerem o novo para além do ambiente doméstico. Muito além de produtos, suas autoras cultivam um modo de vida com um trabalho que constitui a realidade e a elabora, por ser um aspecto importante para a reprodução material e social do lugar. A estética das peças revela uma complexa trama de saberes tradicionais, combinação incessante entre valores subjetivos e objetivos de quem as produz.
Com nosso trabalho, saímos da casa e fomos para a rua passear, juntas. Essa rua que é o fora, o assombro e o assunto do mundo. Viemos juntas e aqui estamos, com você.
Segundo a mestra Dinoélia Trindade, rendeira de bilros baiana e presidente da Rendavan, a Associação das Rendeiras de Dias D’Ávila, “empoderar a vida de uma mulher é oferecer condições para que ela venha a reconhecer que é capaz”. Foi com isso em mente que decidi, em 2020, reunir forças e dar corpo a um trabalho que já vinha realizando há mais de dez anos. Assim nasceu a Ómana, que é fruto, é filha, é mãe e é mana. É um trajeto a ser sempre percorrido, descoberto, cheio de encontros. É tanto trabalho e tantos nós que precisamos conhecer e reconhecer.
Ómana é uma interjeição de admiração e também um convite: “Ó, mana! Vem com a gente, que sempre somos juntas”. Mana é como muitas das artesãs se chamam, reconhecendo na irmandade profissional o caminho que percorrem.
Assim, propomos dar um giro com essa produção, deixá-la mais amostrada e valorizada através da atuação em três principais frentes: registro das técnicas e dos seus modos de fazer, difusão de saberes para que sigam adiante e experimentação técnica, com design participativo, voltado à criação de novos produtos, únicos e expressivos.
O aprendizado
Quando as artesãs, em sua maioria entre os quarenta e sessenta anos, nos contam sobre como aprenderam seus ofícios, percebemos muitos pontos comuns. Em geral, elas recordam que foi com nove ou dez anos que, de tanto olharem as mais velhas trabalhando, recriaram no gesto o conhecimento que muitas vezes não era repassado em palavras.
Em cenários de muita precisão, o trabalho iniciava já na infância, com sentimentos de curiosidade e fascínio que se misturavam com a necessidade de fazerem-se produtivas desde muito novas para auxiliarem os pais na gestão do lar. Percebemos isso em muitas falas, como a da mestra Suelene Cavalcanti, de São João do Tigre, que conta: “Comecei a me desenvolver com a renda na casa das vizinhas. Visitava a casa de umas moças e ficava lá olhando. Ninguém me ensinou, comecei desenvolvendo com meu olhar. Na época, meu pai e minha mãe não tinham condições de comprar o material pra eu aprender, foi aí que eu tive um pensamento de pegar a ourela de tecido, de onde eu tirava o fio e a fitinha pra treinar”.
Esse relato, para além de demonstrar a determinação de uma mulher que renda há mais de cinquenta anos, evidencia uma criatividade intrínseca ao fazer artesanal brasileiro, que adequa a realidade ao desejo e à necessidade do momento.
Construir um cenário de maior valorização econômica e reconhecimento para as artesãs é criar condições para que essas técnicas sejam percebidas em sua grandeza, oportunizando sua continuidade. Esse é um dos pontos mais destacados por muitas das mulheres que dominam esses conhecimentos e que veem as mais jovens desinteressadas em aprender. Seja pelo ainda presente desvalor ou pela expansão das oportunidades, o repasse e a consequente subsistência dessas práticas depende da criação de estratégias e políticas públicas para esse fim.
Assim, quando Suelene diz “tenho uma história muito longa com a renda renascença, eu me sinto assim como se fosse minha praia, minha vida. Meu sonho é que as pessoas tivessem mais o acreditar, tivessem mais visão pra não deixar morrer, pra que essa nossa história que já vem há tão longo tempo, uma história tão bonita, se prolongasse”, ela fala por todas nós.
Esse relato é complementado pelo depoimento de Risolange Rodrigues da Silva Melo, presidente da ASTALC, a Associação das Tapeceiras de Lagoa do Carro. Para ela, “a artesã precisa ser valorizada com políticas públicas voltadas ao artesanato, e que ela, se sentindo valorizada, possa inspirar as mais novas. Eu sou turismóloga por formação, mas antes disso eu sou artesã, antes de tudo eu sou artesã, por querer, por amor e por resistência”.
Precisão: da falta ao rigor na execução
Seguimos com as histórias de vida das mestras como fio que estrutura e conduz nossa trama. Compreendemos, a partir delas, que a precisão, tão relatada pelas mulheres, diz respeito aos momentos de maior carência pelos quais passaram. Porém, é com precisão, no sentido do rigor na execução, que executam seus trabalhos e superam essas condições. Jeruza Gomes, mestra rendeira do Sítio Mimoso de Jataúba, conta: “A renascença pra mim foi uma história, aprendi com as minhas irmãs e com o pessoal da minha comunidade, do Sítio Mimoso, quando tinha sete anos. Era uma época muito difícil, porque o trabalho que tinha era na agricultura. Meus pais trabalhavam na cata de algodão, de mamona, porém não era todo o tempo. Faz 43 anos que eu conheci a renascença e me adaptei fazendo, e com ela foi que eu consegui, a gente comprava comida, roupa e calçado. Não era valorizada como está sendo hoje, porque a gente vendia aos atravessadores que passavam por aqui no sítio Mimoso, e essas pessoas já vendiam pra outras lá fora e pra gente ficava sem valor. Mas conheci minha amiga Helena, e através da nossa parceria com a Ómana eu vi que a renascença tem valor. É um trabalho manual que antes a gente só conhecia alguns tipos de pontos, hoje eu posso considerar que eu tenho conhecimento de uns cinquenta tipos de pontos, sei que hoje é valorizado, um trabalho de muita importância, garantido”.
Nossa criação
Em uma relação direta com as artesãs e partindo de intensa pesquisa de campo, identificamos fragilidades e potencialidades na cadeia produtiva de determinada técnica para, a partir daí, buscarmos coletivamente novos caminhos possíveis. Pesquisando a fundo suas histórias e métodos, buscamos, através do design participativo, solucionar questões fundamentais para o encontro de um mercado mais justo, promovendo a manutenção e salvaguarda dos conhecimentos tradicionais.
Dessa forma, a reativação de pontos já pouco conhecidos e aprimoramento do acabamento foram centrais para projeto. A Luminária Caju é um exemplo disso; trabalho resultante da união entre Amarello, Ómana, a artista Aline Vilhena e rendeiras do Cariri Paraibano, coordenadas pela mestra Suelene Cavalcanti de Oliveira, é um dos resultados dessa atuação que apresentamos aqui. Seguimos, dessa forma, estabelecendo laços e trabalhando lado a lado com as artesãs em todo território nacional, potencializando toda capacidade criativa e produtiva existente.