Intimidade: a travessia entre o banzo e o amor
Reflexões a partir do livro “Por que amamos?”, de Renato Noguera
“O dicionário vai chamar essa coisa pouca, boba, pequena, comum, banal, simples, tola de amor (…)
E partilhar um segundo fundo assim é quase se dar inteira pra alguém hoje em dia
Do jeito que as coisas andam tão quebradas, né?”
(Trecho de poema de Tatiana Nascimento para a canção Lençóis, de Luedji Luna)
Amor, palavra de grafia simples, talvez uma das primeiras com a qual temos contato ainda na alfabetização, mas que carrega uma gama tão complexa de significados e percepções. Como escreveu o grande compositor carioca Arlindo Cruz, “até hoje ninguém conseguiu definir o que é o amor”.
Em seu livro Por que amamos? O que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor, o filósofo Renato Noguera utiliza a psicanálise, a história e a filosofia, além de mitos de diversas culturas, para buscar responder a essa inquietação que vem habitando o imaginário da humanidade ao longo da História.
Já nos dois primeiros capítulos, o autor apresenta duas perspectivas que me parecem extremamente interessantes e sobre as quais pretendo me ater ao longo deste artigo. No primeiro deles, chamado O caminho do amor, Noguera nos apresenta uma classificação do amor como uma travessia compartilhada, onde a autoescuta é a peça central para o sucesso desse caminhar. Não é possível se disponibilizar a ouvir o outro sem que antes escutemos a nós mesmos e entendamos o que temos capacidade de absorver, bem como o que temos a oferecer. Ainda nesse capítulo, o autor discorre sobre as narrativas construídas a partir de um ideal de amor romântico pautado em paixões avassaladoras, mas que não se sustentam com o tempo ou não chegam ao cume da montanha. Já no segundo capítulo, intitulado Amar como sobrevivência, Renato desenvolve sua investigação a partir de fatores mais instintivos, sobretudo ao considerar elementos biológicos e psicológicos que possibilitam a existência do amor.
Por que amamos quem amamos? Por quais critérios essas escolhas são orientadas?
As respostas para essas perguntas são construídas a partir da análise de teorias como a psicologia evolucionista, difundida por Robert Wright, que elucida como homens e mulheres escolhem seus parceiros (tratando aqui de relações heterossexuais) a partir de características físicas específicas que acionam na psique do sexo oposto os mecanismos de atração e desejo, como um reflexo inerente à natureza humana de busca pela perpetuação da espécie. Ao final desse segundo capítulo, Noguera faz uma reflexão que me interessa desdobrar. Ele afirma:
Há vários outros estudos que poderiam ser citados, mas o ponto aqui é notar que o amor também possui uma faceta animal, determinada por um instinto de sobrevivência. Quando duas pessoas se amam, elas são capazes de criar seus descendentes e de ter uma boa vida, apesar dos conflitos e das ameaças ao redor. Uma relação amorosa contribui para manter a espécie viva, fazendo com que seus envolvidos tenham um compromisso maior com a vida e, consequentemente, que as comunidades estejam mais protegidas.
Compreendendo, então, o amor como um elemento catalisador que eleva a potência do comprometimento dos indivíduos com a vida e com a sua comunidade, questiono: como gerar esta potência de conexão e expansão em contextos de escassez ou ausência de amor? Como ressignificar a experiência do amor como parte fundamental das vivências de indivíduos e grupos para os quais a possibilidade de amar tem sido negada?
O intelectual brasileiro Antonio Bispo dos Santos classifica o mundo a partir de duas cosmovisões principais: a afro-pindorãmica e a eurocristã. A primeira se constrói a partir de uma natureza xenofílica, de conexão e compartilhamento, tendo a circularidade como valor que pauta e retroalimenta seus sistemas de relações. Já a cosmovisão eurocristã é forjada a partir da xenofobia, em que se perpetuam condições de disputa e tensão. É o ideal de superação do outro, de aversão e destruição do que é diferente — percebido, então, como inadequado. O mito do Paraíso como objetivo a ser alcançado apenas pelos “escolhidos” é a base da régua moral que culmina em todo um projeto de exclusão do que não se encaixa no modelo estabelecido. Observando essas duas cosmovisões propostas por Antonio Bispo e aplicando-as ao contexto da colonização do continente africano e das Américas, percebemos que a imposição do modelo civilizatório eurocristão é também a imposição do modelo de amar experienciado por essas sociedades.
Com a licença de Renato Noguera, proponho, a partir de agora, um diálogo entre seu livro e outros autores, como bell hooks e Sobonfu Somé, para buscando compreender como as violências do processo de colonização e escravização impactaram a forma de amar de pretos e pretas em diáspora.
O banzo
Segundo o Novo dicionário banto no Brasil, organizado por Nei Lopes, a palavra “banzo” é oriunda de dois idiomas que compõem o tronco linguístico bantu: em quicongo, mbanzu pode ser traduzido como lembrança; em quimbundo, mbonzo significa saudade ou mágoa. É uma nostalgia profunda que atravessou (e ainda atravessa) o repertório emocional de indivíduos africanos escravizados e seus descendentes. O banzo é um estado de melancolia que é resultado de uma série de ausências, sobretudo a ausência de pertencimento à qual foram submetidos esses indivíduos desterritorializados. Viver em estado de banzo, para além do sentimento de falta do que lhe é caro e familiar, é sobre ver se afastar dos olhos, tal qual as terras do continente-mãe, a liberdade do amor.
A quem é concedido o direito de amar?
bell hooks, em seu artigo Vivendo de amor, apresenta uma perspectiva bastante dura, porém realista, sobre como pessoas negras foram privadas do direito de amar. Mesmo após a abolição do regime de escravização, pessoas negras não se viram livres para vivenciar seus afetos. Ela relata:
Depoimentos de escravos revelam que sua sobrevivência estava muitas vezes determinada por sua capacidade de reprimir as emoções. Num documento datado de 1845, Frederick Douglass lembra que foi incapaz de se sensibilizar com a morte de sua mãe por ter sido impedido de manter contato com ela. A escravidão condicionou os negros a conter e reprimir muitos de seus sentimentos. O fato de terem testemunhado o abuso diário de seus companheiros — o trabalho pesado, as punições cruéis, a fome — fez com que se mostrassem solidários entre eles somente em situações de extrema necessidade.
Num contexto onde os negros nunca podiam prever quanto tempo estariam juntos, que forma o amor tomaria? Praticar o amor nesse contexto poderia tornar uma pessoa vulnerável a um sofrimento insuportável. De forma geral, era mais fácil para os escravos se envolverem emocionalmente, sabendo que essas relações seriam transitórias. A escravidão criou no povo negro uma noção de intimidade ligada ao sentido prático de sua realidade.
A História não nos poupa de exemplos da presença constante do desamor e das lacunas afetivas que costuram a trama da construção das diásporas africanas pelo mundo. Porém, para que chegássemos até aqui, não teria sido necessária a experimentação de algum tipo de amor? Acredito que a chave para compreender essa questão é o entendimento da dimensão da intimidade. hooks se refere à intimidade no sentido de uma ação prática de desenvolvimento das relações. A intimidade é uma construção com propósitos.
A travessia
A filósofa Sobonfu Somé, em sua obra O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar, desenvolve o conceito de intimidade a partir da percepção de mundo do povo Dagara, originário da Costa Oeste do continente africano. Para eles, o amor idealizado a partir da paixão é um erro. A intimidade é um caminho que deve ser percorrido pautado pela razão e em comunidade. A intimidade, então, se apresenta como uma configuração de amor que dialoga diretamente com a circularidade, valor civilizatório tão fundamental para muitos dos povos tradicionais africanos. Podemos dizer, assim, que a travessia com intimidade se coloca como uma elaboração de amor possível.
Se voltarmos o nosso olhar para os métodos de proteção e resistência pretos no Brasil, pensando nos diversos modelos de estruturação de famílias pretas ou na organização dos quilombos, dos candomblés ou das favelas, não estamos, em certa medida, falando de amor?
Talvez precisemos remover a lente shakespeariana que nos foi apresentada por muito tempo como universal para voltarmos à provocação central proposta por Renato Noguera: por que amamos?
Não tenho aqui a pretensão de dar por esgotada esta questão, mas, talvez, concluo com a sensação de que amar quem sabe seja a nossa principal maneira de reivindicar nossa existência. Seguir amando é o ato de teimosia que nos permite retornar em sankofa para mais próximos dos sonhos dos nossos ancestrais.