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Detalhe de Un vendredi au Salon des Artistes français, de Jules Grün (1911)
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Festas e frestas

por Helena Cunha Di Ciero

“Uma conversa profunda vale muito mais que horas de papos superficiais.”

Todo ano a mesma coisa. Corro do trabalho, me arrumo com pressa. Penteio as crianças e quando chego no jantar de família, todo aquele vendaval preparatório parece se arrefecer. Muita comida, muito barulho, muita gente.

Conversas de pouca intimidade com alguns, de muita com outros. A sobremesa custa a chegar, crianças pedem para ir embora. Entendo, afinal, sou a primeira a cansar destes eventos. Festas são experimentos de muita exposição para mim, e embora eu adore gente, detesto ficar além do meu tempo. Desde mocinha. Acredito que isso se dê por uma certa permeabilidade que sinto em alguns encontros. Festas são feitas de excessos e ausências, concomitantemente. De barulho e solidão.

Para mim a melhor parte das noites, sempre se deu nas conversas. Sou psicanalista não é por acaso. Acompanhar a história de alguém, suas dores e angústias, tem um aspecto majestoso para mim.

Ontem, ouvi uma mulher contando sobre seu marido doente com tanta intensidade que o caso me foi suficiente. Era o suficiente para aquele evento. Não havia como sair de barriga mais cheia e coração mais quente. Uma conversa profunda vale muito mais que horas de papos superficiais.

A senhora me contava do marido acamado que já não a reconhecia, da tristeza que sentia por isso. Abria os braços e gesticulava, como se quisesse segurar o tempo, dedos longos abertos com firmeza, apertando o ar: “Ele foi meu amor desde os catorze anos, meu primeiro e único amor. Como vou viver sem ele?”

Em seus olhos verdes arregalados, vi o pavor que sentia em ficar viúva. Porém, quando começou a falar de quando se conheceram, seus olhos passaram a brilhar de encantamento. Ela me contava, orgulhosa, de tudo que aquele homem havia construído, sua capacidade de criar, pensar, seu jeito amoroso com os filhos e todo seu legado. O marido tinha sido um grande construtor. Enquanto falava, descrevia prédios famosos da cidade que haviam sido projetados por ele, admirada.

O que ela não viu, eu vi. Seu rosto assustado, reconstruído pela ternura e pela força das memórias daquilo que haviam vivido até então. Era como se, ao lembrar-se do que o marido tinha sido, o amor rejuvenescesse sua alma. Naquele segundo, vi aquela senhora jovem outra vez, tamanha a vitalidade com que me apresentava seu amado. Era visível o antídoto da memória funcionando como a celebração de um encontro, de duas pessoas, nas linhas traçadas nas palmas de duas mãos. Eu me sentia como se visitasse uma cidade bonita e entendesse naquele momento, a história por trás da estátua da praça central.

De fundo, ouvia a família de meu marido fazendo as preces judaicas da festa de Pessach. Mas eu e ela decidimos por não acompanhar a reza. Ficamos de canto e ela me apresentando seu amor.

Segurava as mãos dela enquanto a ouvia e me sentia como se estivesse entrando numa fresta sagrada, no meio de uma festa. A conversa se dispersou quando a mesa encheu com outros membros da família. Outros assuntos, outras conversas, crianças brincando. A vida continua depois das frestas abertas. Hora de voltar. Saí antes da sobremesa, pensando que era como se ela tivesse me mostrado a joia mais preciosa de seu cofre, o capítulo mais importante de sua história.

Tem algo tão sublime no encontro de duas pessoas – e a história da origem de uma família quando ouvida num momento de celebração explica toda a finalidade de uma existência. Pessach significa passagem, algumas pessoas passam e ficam. Ao final também estamos aqui de passagem, isso veio escrito nas linhas invisíveis da certidão de nosso nascimento.

Uma vez, uma atriz me contou de uma conversa com Elke Maravilha na qual ela disse: “Quando damos a vida a alguém, damos também a morte”. Isso é inevitável. A despedida sempre está lá, mas aquilo que fica daqueles que passam por nós, enquanto existirmos não passa jamais. Fica dentro de nós, como uma estátua concreta, imune às tempestades, erguida na praça do nosso coração.

E quando esse encontro é suficientemente forte, basta uma centelha de memória para acender outra vez toda uma existência.

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