Morning Sun, de Edward Hopper (1952)
#44O que me faltaCulturaSociedade

O paradoxo da solidão contemporânea

O desenvolvimento da vida moderna e das grandes cidades trouxe para a sociedade uma sensação constante de ansiedade: estar sempre coordenando o horário do trabalho, a correria no transporte, a paisagem urbana em constante transformação, o avanço da tecnologia, a superficialidade das relações, etc. Com tudo isso, veio também uma sensação constante de incompletude e, muitas vezes, de solidão. Claro que essas questões, que são tanto sócio-históricas quanto filosófico-existenciais, já foram abordadas de diversas maneiras pelas ciências e pelas artes, em todas as suas linguagens.

Um estudo mais ou menos recente de pesquisadores portugueses — Rui Miguel Costa, Ivone Patrão e Mariana Machado — com jovens e jovens adultos, publicado em 2018, detectou que o uso intensivo e problemático da internet causa um sentimento de solidão que não está associado à falta de apoio social — ou seja, à falta de um relacionamento amoroso, de uma família presente, de um grupo de amigos coeso —, mas sim à falta de tempo para interagir cara a cara com os outros por passar tempo demais no mundo online.

Ou seja: é justamente a comunicação online que gera a sensação de solidão. Claro, não há calor na interação pela internet, o famoso olho no olho, o toque, o abraço, o contato com a pele do outro. No entanto, uma das conclusões mais interessantes dos cientistas é a de que, por mais que a comunicação através da internet não nos satisfaça justamente pela ausência de troca sensorial, recorremos a ela para nos sentirmos mais conectados com as outras pessoas.

Vivemos um tempo em que temos a oportunidade de falarmos de forma rápida e direta com nossos amigos e familiares como nunca tivemos antes — pelo menos para quem viveu a época do telefone com fio e os altíssimos preços das chamadas interurbanas. Hoje podemos mandar mensagens instantâneas por diferentes aplicativos e redes sociais para quem está do cômodo ao lado ou para quem está do outro lado do globo. Só que junto à possibilidade do contato imediato vem a ânsia por se sentir conectado ou correspondido imediatamente. E não é sempre assim que o tempo — ou melhor, que os tempos próprios das pessoas — corre, apesar do fluxo acelerado da contemporaneidade. É como se a velocidade do tempo do trabalho tivesse invadido o ciclo do tempo dos nossos sentimentos e afetos e eles tivessem entrado em rota de colisão.

“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”

A célebre frase do livro O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry, também ganhou novas interpretações na era das redes sociais. Entre um giro e outro nas timelines de plataformas como o Twitter e o Instagram, é bem possível que o algoritmo te indique um post contendo um meme ou um recado fofo com a frase. De um lado, há os que defendem que a ideia apresentada no livro através do diálogo do pequeno príncipe com a raposa sobre a relação do garoto com a rosa impõe uma obrigação afetiva entre duas partes que pode ser desgastante, sobretudo por causa do “eternamente”. Se uma relação entre duas pessoas que se gostam, a partir de um determinado momento, passa a ser desgastante ou “tóxica” (para usar uma palavra em voga), não há por que não se interromper esse ciclo. De outro lado, estão os que defendem que, se tudo é conversado, os danos emocionais de uma relação que precisa de reparos é menor. Parece óbvio que, quando estamos falando de relações interpessoais, sejam elas afetivo-sexuais, de amizade ou de trabalho, esteja implícita a reciprocidade entre as duas ou mais pessoas em questão. Mas nem tudo é o que parece, e, quando um lado não é correspondido em suas expectativas, mas não é avisado disso, há uma gíria mais ou menos recente que dá nome à situação: é o ghosting.

O ghosting se tornou uma expressão muito utilizada no contexto do uso das redes sociais e aplicativos de mensagens para se referir a quando uma pessoa deixa de nos responder. A expressão em inglês que se refere à palavra “fantasma” — ou seja, a pessoa sumiu, mas você sabe que ela continua rondando o seu entorno, mesmo que não apareça — é sinônimo do uso do termo “vácuo” como gíria. O ghosting pode ser “dado” ou “recebido” por diversos motivos: pelo fato de uma das partes não querer mais se comunicar, por não saber como comunicar o fim de um relacionamento ou uma situação desagradável envolvendo o outro, mas também por consequências psíquicas do uso extremo das redes sociais ou, como chamaram o pesquisadores mencionados, o PIU (do inglês problematic internet use).

Mais uma vez, os memes são ótimos termômetros para inferir situações cotidianas pelas quais os indivíduos têm passado e com que, na experiência de compartilhar nas redes, acabam se identificando. Há, por exemplo, o meme sobre quem você é no WhatsApp: aquele que responde tudo imediatamente; o que visualiza e deixa pra depois; o que demora dois ou três dias para responder a mensagem de um amigo; ou o que visualiza, deixa pra depois e nunca mais se lembra daquela mensagem, que acaba indo para as profundezas das suas notificações?

A novidade, no entanto, parece ser que o ghosting passou a rondar também o ambiente de trabalho. Não é raro se deparar com textos sobre o tema ao abrir outra plataforma de interação online, o LinkedIn, exclusiva para trocas profissionais. O “ghosting trabalhista” aparece ali tanto do lado do patronato quanto do trabalhador. Ou seja, há relatos e análises de situações em que funcionários, em um determinado dia, simplesmente abandonaram o emprego sem explicações prévias, ou mesmo de empresas que deixaram funcionários ou candidatos a uma vaga em estado eterno de espera. Essa segunda situação, que ocorre no momento da entrevista de emprego e ocorre por falta de retorno ao candidato, é a mais comum.

Essas situações vêm demonstrando que a necessidade de estarmos o tempo inteiro conectados é cansativa. Como as demandas de trabalho se tornaram exaustivas e pouco rígidas quanto aos seus limites de início e fim, sobretudo depois da pandemia, em que muitos de nós passamos dois anos seguidos tentando conciliar o ambiente doméstico com o profissional, vivemos constantemente com uma sensação de estafa mental. Ansiedade, tristeza e nervosismo são sentimentos que foram relatados por mais de metade da população em pesquisas sobre saúde mental em todo o globo.

A tal “parte que falta”

Há mais ou menos cinco anos, a youtuber Jout Jout[1], cujo canal já era largamente conhecido do público jovem brasileiro, viralizou mais uma vez com um de seus vídeos. Nele, ela lia o livro infantil A parte que falta, do norte-americano Shel Silverstein, traduzido para uma edição brasileira. O livro é de 1976 e conta a história do personagem O, um círculo em que há um pedaço em formato de fatia faltando. O sai em sua jornada disposto a encontrar a parte que irá lhe preencher. No caminho, ele nos mostra coisas que lhe dão prazer, como sentir o aroma de uma flor ou ter uma borboleta pousando em si.

O tenta se encaixar em várias partes que encontra pelo caminho, quase sempre sem sucesso. Porém, ele continua tentando, até que um dia encontra uma parte que se encaixaria perfeitamente nele, mas a parte simplesmente não quer. Ela se considera autossuficiente. Então ele segue, encontra uma outra parte que o preenche e fica muito feliz, rolando de um lado a outro, até que se sente sufocado, porque, com a parte junto dele, ele não para mais para sentir o cheiro da flor ou ver a borboleta. Ele nem mesmo consegue cantar. Angustiado, O por fim se separa da parte, começando uma nova busca por uma nova parte, entendendo a transitoriedade da completude de si, enquanto indivíduo, na caminhada.

A lição do livro, concorde-se ou não com ela, pode ser uma ponto de partida para pensar a questão contemporânea da solidão. O que tanto buscamos enquanto estamos atrás das telas, interagindo com amigos e desconhecidos, comparando nossas vidas com a do vizinho do prédio ao lado no mesmo grau com que nos comparamos com celebridades?

A questão apontada pelo estudo dos cientistas portugueses citados é tão complexa e paradoxal que se, de um lado, o mundo conectado nos faz mais solitários porque prescinde da sensorialidade do tato, por outro, a vida de carne e osso não supre a expectativa da superconectividade com pessoas e ambientes diferentes proporcionada pelo mundo virtual. Sabe quando você está no bar com os amigos e um deles não consegue sair do celular? Assim como o ghosting, esse fenômeno também acabou ganhando um nome em inglês: phubbing, que junta as palavras “phone” (telefone) e “snubbing” (esnobar), e significa esnobar alguém por causa do telefone.

Parece intricado o jogo que estamos jogando, cujo objetivo é matizar todos os espectros das possibilidades de relação entre o mundo virtual e o mundo real, que cada vez mais são praticamente uma coisa só. São muito diversas as variáveis de contato e resposta, e as pesquisas deixam cada vez mais claro que não, não estamos indo bem. Temos soluções? Bem, as redes sociais seguem criando problemas individuais e coletivos, inclusive de cunho político, bastante graves. Mas talvez uma busca equilibrada entre o que podemos cultivar e o que nos falta seja uma boa receita para criarmos novas conexões afetivas com nosso entorno.


[1] Nome artístico da jornalista, escritora e vloger Julia Tolezano.