Composição em vermelho, de Anna Maria Maiolino (1983). A artista ítalo-brasileira é uma das homenageadas da 60a Bienal de Veneza (Divulgação)
Sociedade

O futuro da mobilidade urbana

A mobilidade urbana é uma ferramenta de inclusão social imprescindível. Oferecer acesso facilitado e acessível a diferentes regiões e serviços é desempenhar um papel fundamental na garantia dos direitos de mobilidade e oportunidade para todos os cidadãos, independentemente de sua condição socioeconômica. Como prova de que a mobilidade urbana sempre chegará em quaisquer futuros com um tanque de importância cheio, ela segue sendo extremamente relevante à sociedade contemporânea, ganhando novas camadas de relevância na medida em que a sociedade avança de maneira desembestada. Em um mundo cada vez mais interconectado e marcado por desafios — tais quais a urbanização acelerada, a poluição e o congestionamento excessivo —, transporte público e companhia surgem como uma solução eficaz para promover a sustentabilidade, a equidade e a qualidade de vida nas cidades. 

O trânsito em São Paulo impacta a vida dos seus habitantes.

Nesse contexto, a necessidade de um sistema de transporte público eficiente e abrangente é mais premente do que nunca. 

Das possibilidades exploradas atualmente, parece inevitável pensar na implementação de novas políticas, como a famigerada Tarifa Zero, que só se nacionalizou de fato por aqui com as chamadas Jornadas de Junho de 2013. Essa abordagem, com a qual o transporte público seria gratuito para a população, busca enfrentar desafios como a congestão de tráfego, a poluição do ar e a desigualdade no acesso ao transporte. No panorama brasileiro, as dificuldades para a implementação da Tarifa Zero são acentuadas, principalmente em cidades de grande porte como São Paulo, palco principal das manifestações do Movimento Passe Livre ocorridas há uma década. As cidades brasileiras enfrentam barreiras estruturais, como a falta de investimento adequado em transporte público, a deficiência na infraestrutura e a falta de integração eficiente entre os modos de transporte. Além disso, a dependência do automóvel particular e a resistência política à mudança também são obstáculos significativos.

Um dos principais argumentos contrários ao transporte público gratuito é o financiamento. A gratuidade do transporte público demandaria um substancial investimento público, que poderia ser encarado como um ônus para os cofres municipais. Há preocupações de que a falta de receita proveniente das tarifas possa levar a uma deterioração dos serviços e a uma sobrecarga financeira para as autoridades responsáveis pelo transporte público. Outra dificuldade é conseguir atender o esperado aumento de demanda, o que exige investimento não apenas no aumento de frota, mas em infraestrutura urbana — incluindo faixas exclusivas, eliminação de vagas de estacionamento em vias onde passam ônibus, criação de sistemas de integração e transferência.

Tarifa Zero é uma proposta que ganhou destaque no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, e um dos nomes associados a ela é o da política Luiza Erundina, prefeita da cidade de São Paulo entre 1989 e 1992 e uma defensora ardente do transporte público gratuito. Durante seu mandato, que aconteceu com o Partido dos Trabalhadores, foram realizados estudos e debates sobre a viabilidade da Tarifa Zero em São Paulo, o que popularizou a questão e fez com que a ideia fosse vista como uma possibilidade pelas pessoas. Antes, pouco se pensava sobre soluções como essas, descartadas de partida por serem tidas como inviáveis. A proposta foi amplamente discutida e despertou tanto apoio entusiasmado quanto críticas acaloradas. No entanto, toda ideia que desafia forças maiores sofre forte resistência e, devido a questões financeiras e políticas — e, não para a surpresa de ninguém, até pressão midiática —, a Tarifa Zero não foi implementada integralmente na cidade durante o mandato de Erundina. 

Apesar disso, como a boa iniciativa que é, o debate sobre a Tarifa Zero continuou a ecoar no cenário político brasileiro. Espera-se, inclusive, que tenha forte impacto nas eleições municipais deste ano. 

Luiza Erundina, com seu apoio à Tarifa Zero e outras iniciativas relacionadas à mobilidade urbana, deixou um legado de discussão e conscientização sobre a importância do transporte público acessível e de qualidade. Sua contribuição ajudou a colocar a questão em pauta, estimulando a busca por soluções inovadoras para os desafios da mobilidade urbana. 

E ela não está sozinha nessa. Há tanto políticos quanto pesquisadores que fazem coro à Erundina.

Enrique Peñalosa é um político colombiano conhecido por sua veia urbanista. Foi prefeito de Bogotá entre 1998 e 2001, e novamente entre 2016 e 2019. Peñalosa defende fortemente a isenção de tarifas como uma medida para garantir a equidade social e promover cidades mais inclusivas e sustentáveis. Durante seus mandatos, ele implementou políticas para tornar o transporte público acessível a todos os cidadãos.

“Uma cidade avançada não é aquela em que até os pobres usam carros, mas sim aquela em que até os ricos usam transporte público.”
Peñalosa na Ted Talk Why buses represent democracy in action (2013)

Bogotá tem uma população de 7,181 milhões de pessoas (2018). Getty Images

Susan Shaheen é uma pesquisadora estadunidense especializada em mobilidade compartilhada e inovação no transporte. Ela argumenta que o passe livre pode ser uma estratégia eficaz para aumentar a utilização do transporte público, especialmente quando combinada com outras medidas, como o compartilhamento de veículos. Aprofundando-se no assunto, ela também chama a atenção para os cuidados que devemos tomar na automatização de processos, já que muitas vezes eles reproduzem imperfeições humanas.

“Precisamos pensar cuidadosamente sobre o que queremos dizer com equidade. (…) Se entrarmos em um futuro automatizado, onde temos aprendizado de máquina e inteligência artificial aprendendo com o motorista, preconceitos raciais podem ser incorporados aos algoritmos.”
Shaheen em entrevista para Iomob, em 2018

Judith Dellheim, que já esteve no Brasil algumas vezes em fóruns sobre mobilidade urbana, é uma pesquisadora alemã da Fundação Rosa Luxemburgo que aborda a questão da Tarifa Zero como uma forma de promover a justiça social e a sustentabilidade. Ela tem acompanhado as propostas de políticas de passe livre na Alemanha e estudado a dependência de seu país em relação à indústria automotiva.

“Na sociedade atual, com muita frequência, as cidades são planejadas de acordo com as necessidades dos proprietários de automóveis. E os poderes públicos – altamente endividados – investem anualmente muito mais por habitante em transporte individual motorizado do que em transporte público local.”
Delheim, no texto Tarifa Zero, a experiência europeia (2019)

No panorama global, aliás, a utilização do transporte público varia entre os países. Em algumas nações, como Alemanha, Suíça e Holanda, o transporte público é amplamente utilizado e bem integrado, com altos níveis de qualidade e eficiência. Em alguns casos, os sistemas de transporte público são parcialmente subsidiados pelo governo, o que reduz os custos para os usuários. No entanto, não existe uma abordagem única em relação à gratuidade do transporte público. Cada país adota diferentes modelos de financiamento e cobrança de tarifas, que vão de acordo com a viabilidade política, financeira e cultural daquela nação.

Na capital da Estônia, Tallinn, uma medida interessante foi implementada em 2013: os residentes da cidade podem usar o transporte público, incluindo ônibus, bondes e trens, mediante o pagamento de uma taxa de registro anual. Já a França, conhecida pela forte presença do Estado na vida prática dos seus cidadãos, tem o caso de Dunkirk: o transporte público na cidade, incluindo ônibus e trens regionais, tornou-se gratuito para todos os passageiros. Em um outro tipo de abordagem, a cidade de Bonn, na Alemanha, oferece um modelo híbrido de transporte público gratuito. Os estudantes e os passageiros com mais de 65 anos podem utilizar o transporte público gratuitamente, enquanto outros passageiros pagam uma tarifa reduzida. Essas abordagens têm como objetivo incentivar a utilização do transporte público e promover a sustentabilidade.

Um dos exemplos que mais chama a atenção, porém, é o de Estocolmo, capital da Suécia, que adotou uma abordagem diferente para tornar o transporte público mais acessível. A cidade introduziu um sistema de tarifas progressivas, em que o preço da passagem é calculado com base na renda dos passageiros. Dessa forma, aqueles com menor renda pagam menos ou até mesmo têm acesso gratuito ao transporte público.

O futuro da mobilidade urbana envolve a exploração de novas políticas, e cada caso deve ser pensado e planejado de maneira específica. Isso inclui a adoção ou não de novidades e tendências que estão moldando o futuro do transporte.

Veículos elétricos que produzem energia limpa são um exemplo: com a transição para veículos elétricos ganhando impulso em todo o mundo, as montadoras estão investindo pesadamente no desenvolvimento de carros elétricos e a infraestrutura de carregamento está sendo expandida. A mobilidade compartilhada é uma outra possibilidade: os serviços de compartilhamento de veículos, como carros, bicicletas e patinetes, estão se tornando cada vez mais populares. As pessoas estão optando por compartilhar veículos em vez de possuí-los individualmente, o que ajuda a reduzir o número de carros nas ruas e a diminuir a poluição. Além disso, estão surgindo plataformas que integram diferentes modos de transporte para oferecer soluções de mobilidade mais completas.

Mas, acima de tudo, a inteligência artificial é quem mais deve pesar nessas decisões e discussões. A tecnologia de veículos autônomos está progredindo rapidamente, e empresas de tecnologia e montadoras estão investindo nela para uso compartilhado de táxis autônomos e ônibus sem motorista. Essa tecnologia tem o potencial de melhorar a eficiência e a segurança do transporte, além de reduzir o congestionamento nas estradas. Da mesma maneira, a inteligência artificial está sendo aplicada ao gerenciamento de tráfego e ao planejamento urbano para otimizar o fluxo de veículos e melhorar a eficiência do transporte. Algoritmos avançados podem ajudar a prever padrões de tráfego, otimizar rotas de ônibus e sincronizar semáforos para reduzir o congestionamento e melhorar a fluidez do tráfego. 

Por essas e outras, as cidades estão investindo em infraestrutura conectada para melhorar a mobilidade urbana. Sensores e dispositivos inteligentes estão sendo usados para coletar dados em tempo real sobre o tráfego, qualidade do ar e uso de transporte público. Esses dados são usados para tomar decisões informadas sobre o planejamento urbano e melhorar a eficiência dos sistemas de transporte. À medida que a tecnologia avança e as demandas das cidades evoluem, é provável que novas inovações surjam, buscando criar sistemas de transporte mais sustentáveis, eficientes e acessíveis. 

Tomando os cuidados preconizados por Susan Shaheen, e sempre tendo a ética como fio condutor, a inteligência artificial pode levar a caminhos eficazes e mais abrangentes. 

No tecido intrincado das ruas urbanas, onde se cruzam sonhos, destinos e histórias, encontra-se a essência do direito de ir e vir do cidadão. Como cidade, tem-se o dever de tornar tangível essa aspiração, pavimentando caminhos que transcendam a mera mobilidade física. Nesse emaranhado de linhas, surge uma sinfonia de vidas em movimento, dançando em harmonia com o pulsar da cidade. 

Quando reconhecemos que a liberdade de deslocamento é mais do que uma necessidade prática, mas sim a própria poesia das nossas existências, somente então estaremos plenamente vivendo a verdadeira essência de uma mobilidade urbana inclusiva. Faz lembrar da frase da celebrada e saudosa Toni Morrison: “Eu sonho um sonho que me sonha de volta para mim.”

É possível. Mas é preciso fazer com que assim seja.