Maré Alta Mangaratiba, de Luiz Zerbini, em Paisagens Ruminadas, retrospectiva do artista no CCBB Rio. Foto de Pat Kilgore.
Sociedade

E quando a crise climática alcança nossas vidas?

Já há um bom tempo, os prognósticos ambientais são alarmantes. Muito embora a mentalidade das pessoas tenha mudado em prol de medidas sustentáveis que teriam em mente não só as gerações futuras mas também as de agora, poucas mudanças significativas ocorreram de fato. Podemos atribuir isso a razões diversas, desde políticas macro até o descaso pessoal por problemas aparentemente distantes. No entanto, esses problemas agora batem à porta. Se não agirmos, a entrada será forçada e trágica. O limite temporal parece mais curto e drástico, e os próximos dez anos serão cruciais para evitar que as crises desencadeadas pelo sistema econômico global ultrapassem nossa capacidade de adaptação. 

Foto de Wim van ‘t Einde na Unsplash.

Pode parecer radical dizê-lo, mas a verdade é que nossas opções como sociedade são: 1) um futuro cheio de problemas, mas ainda reversível a longo prazo; ou 2) um futuro terminal. O que fazer, então?

O Decênio Decisivo: Propostas para uma Política de Sobrevivência, livro de Luiz Marques publicado ano passado pela editora Elefante, aborda a emergência climática e as crises cumulativas do antropoceno, propondo mudanças fundamentais nos modos de produção, consumo e exploração dos recursos naturais. Marques, historiador da Unicamp, apresenta uma análise rigorosa das causas e consequências da crise ambiental, destacando a necessidade de ações imediatas e coletivas para evitar um colapso irreversível.

“Um programa político baseado nessa exigência não é só factível, mas também o único possível se quisermos sobreviver como sociedades e, no limite, como espécie. Este é o sentido do subtítulo deste livro: propostas para uma política de sobrevivência. Estas páginas se pretendem, portanto, como um chamado à radicalidade da ação política socioambiental, com a ambição maior de suscitar ou enfatizar o senso de máxima urgência exigido por este decênio decisivo.”

Luiz Marques em o “O Decênio Decisivo: Propostas para uma Política de Sobrevivência”

No livro, o autor discute a importância de reavaliar o valor da vida humana e das outras espécies em um mundo onde a busca desenfreada por lucro ameaça a sobrevivência de todos os seres vivos. Ele destaca que a natureza está sendo destruída pelas atividades antropogênicas, especialmente pelo capitalismo globalizado. A concentração de Gases de Efeito Estufa (GEE) na atmosfera, resultante do uso de combustíveis fósseis, é um dos principais catalisadores da emergência climática, com efeitos devastadores, desde o aumento da temperatura global até a perda de biodiversidade.

Um futuro que se distancia do ideal é inevitável. Não temos mais o sonho de viver futuramente como já vivemos no passado, sem ter em vista mudanças radicais que decerto acontecerão e demandarão adaptabilidade extrema. Mas ações políticas imediatas podem atenuar a piora, aumentando as possibilidades de reversão de tendências, de adaptação e, portanto, de sobrevivência. Essa palavra, aliás, é chave no pensamento que deve ser preponderante: ela, a sobrevivência, só será possível no caso de a tomarmos não mais como uma condição que é, a priori, garantida, mas como uma realidade ameaçada que só pode ser conquistada de novo em conjunto e aos pormenores. Se agirmos coletivamente, apesar dos cenários catastróficos que se apresentam com alto teor de probabilidade, um futuro melhor pode se descortinar para nós e para a vida no planeta.

“A questão não é mais sobre quais são os limites nem onde situá-los na escala da sustentabilidade. A questão é política: quem pode e deve estabelecê-los e como garantir que sejam implantados e respeitados. (…) As chamadas liberdades individuais — tais como a liberdade de não se vacinar, de não usar máscara numa pandemia, de jogar lixo pela janela do carro, de desperdiçar água, de se armar, de fazer o que quiser com o seu dinheiro etc. (…) Quanto mais as sociedades retardarem a adoção dessas políticas de sobrevivência, mais o ponteiro do equilíbrio entre liberdade individual e coerção estatal penderá para o lado não só da coerção estatal como também da coerção exercida pela natureza, isto é, por vírus, furacões, inundações, picos letais de calor, secas, incêndios etc.”

Luiz Marques em o “O Decênio Decisivo”

A crise climática do Rio Grande do Sul, que está longe de acabar, ilustra essa situação. O maior problema não foi a falta de previsão, mas a aceitação. Era preciso que se aceitasse o momento do planeta e, a partir daí, tomar as devidas atitudes. Todos os anos, o governo do Rio Grande do Sul se espanta com as chuvas intensas, assim como em Petrópolis, São Sebastião, norte de Minas Gerais, Recife e sul da Bahia. Nos últimos nove anos, as temperaturas do planeta foram as mais quentes já registradas. Ou seja, por falta de aviso não foi. É preciso sempre se preparar. Embora nem sempre seja possível prever a intensidade de um evento extremo, sabemos que se tornarão mais frequentes. Modelos climáticos preveem há décadas um aumento de chuvas extremas no sul da América do Sul, incluindo toda a bacia do Prata. A obra de Marques é uma análise abrangente das advertências de cientistas sobre a emergência ambiental e propõe ações indispensáveis para evitar o colapso da sociedade e a extinção em massa de espécies.

Foto de Ivan Bogdanov na Unsplash

A responsabilidade — que, mesmo em meio aos contextos devastadores, deve ser pensada, para que a situação não se repita — não é apenas dos governos estaduais e federal, mas também do Congresso. As tragédias são resultado da falta de adaptação e combate às mudanças climáticas, áreas onde os Executivos precisam fazer mais e onde o Legislativo tem promovido retrocessos. Ações limitadas às respostas de emergência não são suficientes. Eventos extremos, cada vez mais comuns devido às mudanças climáticas, não podem ser tratados como “imprevistos”. Por essas e outras, Marques defende uma reformulação dos aparatos estatais, que muitas vezes agem como corporações na exploração de combustíveis fósseis, e a necessidade de uma governança global para resolver problemas que transcendem fronteiras nacionais, como as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade. 

Na visão dele, seria interessante pensar em uma desglobalização da economia aliada a uma globalização democrática da política, para enfrentar os desafios globais com uma abordagem territorial e cooperativa. A crescente desigualdade, impulsionada pelas crises ambientais e financeiras, é criticada, e ele propõe uma renda mínima universal e um limite para a renda máxima para promover maior equidade. A sobrevivência da humanidade depende da definição de limites claros para a acumulação de riqueza e consumo, mudanças possíveis com um novo consenso social fomentado pelas universidades e outras instituições.

Como amplamente sabido, mas minimamente levado em conta, superar o capitalismo é uma medida-chave para enfrentar a crise climática. A produção industrial de carne, por exemplo, contribui para as emissões de metano, desmatamento e uso excessivo de agrotóxicos. Mas, para além das pessoas que consomem carne, vencer o lobby das agropecuárias é missão hercúlea. No cenário ideal, haveria uma mudança para sistemas de produção mais locais e sustentáveis, destacando a autossuficiência alimentar e a redução da distância entre produção e consumo como essenciais para um futuro sustentável. As democracias liberais e conferências internacionais, como as COPs, são ineficazes em implementar medidas para descarbonizar as economias e eliminar o uso de combustíveis fósseis. 

Marques propõe uma governança global democrática que supere a soberania nacional absoluta em favor de uma soberania relativa, subordinada aos interesses de sobrevivência da humanidade e das outras espécies.

“(…) a motivação para escrever este livro nasce de duas apostas otimistas. A primeira é que os anos decisivos para evitar esses cenários futuros extremos ainda estão diante de nós. A segunda aposta é que seremos capazes de agir individual e politicamente ao longo deste decênio, com a radicalidade requerida para reverter o que ainda pode ser revertido, mitigar o que ainda pode ser mitigado e aumentar significativamente nossas chances de adaptação aos impactos do aquecimento global, do empobrecimento da biodiversidade e da poluição.”

Luiz Marques em o “O Decênio Decisivo”

Para a discussão, três conceitos são importantes: o de mitigação, o de adaptação e a redução de danos. A mitigação envolve atacar o problema, como interromper o desmatamento e substituir fontes poluentes por renováveis. A adaptação é preparar as populações para os impactos inevitáveis, como remover populações de áreas de risco e reforçar a rede de saúde para lidar com o aumento de doenças como a dengue. A redução de danos refere-se a respostas emergenciais às tragédias, como procurar sobreviventes e reconstruir casas após deslizamentos. No entanto, as ações das autoridades federais, estaduais e municipais tendem a se concentrar apenas nesta última etapa de resposta. Sem ações políticas eficazes, as tragédias se intensificarão, exigindo cada vez mais da população.

A emergência climática não é uma possibilidade futura, mas uma realidade presente. Ignorar ou minimizar esse cenário só agravará a situação, aumentando a frequência e a gravidade dos desastres. Com um pouco mais de preparo e aceitação, muitas tragédias poderiam ser evitadas.

O Decênio Decisivo propõe oito medidas concretas para a criação de uma política de sobrevivência:

1. Redução radical e emergencial das diversas desigualdades entre os membros da espécie humana — “Hoje, esses valores precipitam a ruína de nossa civilização. Só há civilização digna desse nome onde a cooperação solidária prima sobre a competição e onde a busca por benefícios individuais não suplanta a percepção da superioridade do bem comum.”

2. Diminuição do consumo humano de materiais e de energia — “Já extrapolamos vários limites de resiliência do planeta, e só estamos começando a pagar o preço disso. É preciso entender (…): não há solução tecnológica miraculosa que nos permita sobreviver, mantidos os níveis atuais de consumo de bens, de energia e de interferência antrópica no sistema Terra.”

3. Extensão da ideia de sujeito de direito às demais espécies, à biosfera e às paisagens naturais — “A biosfera, a água, o solo, o ar, as paisagens e as formas magníficas do mundo não estão para os humanos como meios para o seu fim. É necessário superar a concepção utilitária da natureza (…). O planeta não é um ‘recurso’ a ser explorado ou alocado pela economia.”

4. Restauração e ampliação das reservas naturais, a serem consideradas como santuários inacessíveis aos mercados globais — “Superar o capitalismo é restaurar a possibilidade de que uma dimensão central do mundo permaneça separada da mercadoria.(…) Uma reserva natural deve ser considerada como uma sacra domus.”

5. Desmantelamento da economia global e transição para uma civilização descarbonizada — “Não se transitará para uma civilização descarbonizada enquanto as decisões sobre os investimentos estratégicos no sistema energético e no sistema alimentar forem prerrogativas dos que controlam as corporações e os Estados-corporações. A responsabilidade pelas decisões impostas pela emergência climática tem de ser assumida, global e democraticamente, pelas sociedades. E essas decisões têm de ser tomadas neste decênio, antes que as alças de retroalimentação do aquecimento as tomem por nós.”

6. Desglobalização do sistema alimentar e sua transição para uma alimentação baseada em nutrientes vegetais — “Construir um sistema alimentar baseado em nutrientes vegetais, produzidos por uma agricultura orgânica, local, variada e respeitosa dos habitats selvagens, constitui uma ruptura civilizatória tão premente e crucial quanto a transição do sistema energético para fora dos combustíveis fósseis.”

7. Revisão da soberania nacional — “A soberania nacional deve cessar onde houver ameaça ao interesse comum. O Estado-nação é uma estrutura disfuncional diante de ameaças ambientais de natureza global. (…) A soberania nacional deve ceder o passo a uma autoridade superior, formada pela aliança entre representações populares subnacionais e governança global.”

8. Acelerar a transição demográfica aumenta as chances de sucesso das rupturas enunciadas — “Retornar (…) a uma população em torno de dois bilhões, como éramos havia apenas um século, tornará muito mais fácil avançar nas sete propostas enunciadas. Isso será possível no espaço de poucas gerações se conseguirmos construir uma sociedade sem pobreza e riqueza extremas e com igualdade de gênero, o que começa, repita-se, pelo direito das mulheres a decidir livremente sobre suas funções reprodutivas.”

A questão de saber se é possível realizar essas rupturas civilizacionais no prazo de um decênio é difícil, mas não deve nos paralisar. A enormidade da tarefa, a resistência dos interesses econômicos e a fragmentação dos movimentos sociais são obstáculos reais. No entanto, enfrentar um desafio existencial não é uma questão de probabilidade, mas de necessidade. A humanidade não tem alternativa senão se insurgir contra a ameaça de sua própria extinção, e é nesta falta de alternativa que reside a força dessa insurgência. O futuro guarda energias e mudanças inesperadas. 

A história ensina múltiplas lições, muitas contraditórias, e é por isso que os pontos de inflexão podem e devem ser alcançados. Diante de uma ameaça existencial sem precedentes, a palavra final deve ser buscada nas estruturas sociais que tivermos a coragem de construir, além de nossa memória histórica e da agressividade inerente à nossa herança biológica. O Decênio Decisivo nos convoca a construir essas estruturas, a recusar a inevitabilidade da destruição e a lutar por um futuro onde a sustentabilidade e a justiça prevaleçam. 

 Nossa esperança reside na capacidade humana de transformar e de superar.