Arte e diáspora: Renée Green e os passados que insistem em acontecer
Renée Green é uma artista visual, escritora, cineasta e professora norte-americana, cuja prática multidisciplinar abrange escultura, arquitetura, fotografia, vídeo e experiências sonoras, frequentemente culminando em instalações complexas e envolventes. Seu trabalho é profundamente ancorado em pesquisas de antropologia cultural e história social, explorando temas como a figura de Sarah Baartman — mulher sul-africana conhecida como “Vênus Hotentote”, exibida como atração de circo no século XIX —, a história da escravidão, o modernismo arquitetônico e a cultura hip hop.
Green investiga a relação entre arte e história, utilizando colaborações e arquivos como ferramentas de reflexão e criação. Um bom exemplo disso é seu trabalho lançado em 2014, Other Planes of There: Selected Writings, uma coletânea de textos escritos entre 1981 e 2010, que parte da prática arquivística como ferramenta artística. Além de numerosas exposições individuais e coletivas em museus de renome ao redor do mundo, Green é também uma escritora prolífica, com contribuições regulares em publicações influentes como a October, de Massachusetts, nos Estados Unidos, e Texte zur Kunst, da Alemanha.
A exposição Aproxime-se: Perceptos, realizada no espaço cultural auroras, em São Paulo, é a epítome de tudo que a define como artista e ativista — uma síntese assombrosa, tanto pela excelência com que é realizada quanto pelas questões profundas e inquietantes que expõe.
“Trazer a exposição de uma artista internacional como Renée Green para o auroras”, reflete Ricardo Kugelmas, fundador do espaço, “tem um impacto significativo, tanto para o público quanto para o debate sobre questões ligadas à diáspora africana e fluxos culturais dela decorrentes. Renée Green, com sua trajetória de mais de três décadas, tem uma abordagem profundamente reflexiva e crítica sobre a circulação de pessoas, culturas e narrativas. Sua obra oferece um espaço para pensar essas complexas intersecções de maneira que não é panfletária, mas altamente poética e visualmente rica. Essa exposição não só expande as conversas sobre diversidade racial na arte contemporânea, mas também desafia o público a considerar como essas questões estão presentes nas dinâmicas sociais e culturais brasileiras.”
Estreia de Green no Brasil, a exposição tem as temáticas de colonialismo, diáspora e migração muito presentes, exploradas através de múltiplos meios artísticos, como instalações, vídeos, pinturas e esculturas. Um dos destaques de Aproxime-se: Perceptos, aliás, é a obra Commemorative Toile (Brasil), em que a artista estampa poltronas modernistas com imagens que retratam cenas de resistência escravagista, incluindo episódios da Revolução Haitiana.
Essas poltronas, mais que simples objetos decorativos, funcionam como veículos de memória, refletindo a complexidade da história colonial. Ver algo assim estampado em uma peça de mobiliário é perturbador, pois naturaliza violências históricas e, de certa forma, as eleva ao nível canônico, quase religioso. Ter essas imagens duras em objetos que usamos no cotidiano é um lembrete aterrorizante de como essas brutalidades podem se infiltrar nas nossas vidas, tornando-se parte do tecido da realidade.
“A poética na obra de Renée Green”, corrobora Ricardo, esmiuçando a produção da artista, “está profundamente ligada ao conceito de ‘relações’, que serve como fio condutor em sua produção multimídia. Renée entrelaça sua história pessoal e seus interesses com correntes culturais e intelectuais mais amplas, criando uma interconexão rica entre poesia, literatura, filosofia, história, música e arquitetura. Sua abordagem ressalta como, ao longo dos tempos, símbolos são criados e circulam, moldando e sendo moldados pelas experiências humanas.”
E pensar nessas questões a partir de diferentes mídias, para muito além do mobiliário, torna tudo ainda mais complexo. “Esse interesse pelas diferentes linguagens e etimologias reflete um entendimento profundo das dinâmicas de poder e resistência que permeiam as narrativas da diáspora africana. Green utiliza essa poética não apenas como uma estética, mas como um meio de explorar a intersecção de identidades, culturas e histórias. Uma das partes mais interessantes do trabalho de Renée é o fato dela intencionalmente provocar a auto reflexão e uma livre interpretação pelo público, vide o título da mostra: ‘Aproxime-se: Perceptos.’”
A carreira de Green, marcada pela abordagem interdisciplinar, também lança mão da poesia. Os “Space Poems” da exposição, cartazes fixados de maneira aparentemente desconexa, convidam as pessoas a criar novas narrativas conforme são lidos e relidos com inúmeras possibilidades de sequências. Renée, que também é professora no MIT, apresenta uma visão que desafia fronteiras entre tempo e espaço, sugerindo até uma alteração na ordem do tempo, questionando e reinterpretando narrativas históricas de migração e exílio. Ao longo da exposição, como apontou Ricardo Kugelmas, essas obras não impõem significados específicos, mas incentivam o público a explorar suas percepções pessoais, ecoando o conceito filosófico de perceptos, como teorizado por Gilles Deleuze.
O conceito, desenvolvido junto com Félix Guattari, está relacionado à filosofia da arte e à maneira como a percepção é tratada nas obras artísticas, especialmente na literatura e nas artes visuais. Segundo Deleuze, o percepto não é apenas a percepção direta de algo, mas sim uma realidade sensível capturada pela arte e que existe além de uma simples percepção individual ou subjetiva. Diferente do conceito de percepção, que está ligada a um sujeito que percebe, o percepto está ligado à própria obra de arte que gera um bloco de sensações autônomo. Ou seja, o artista tem a capacidade de capturar e criar perceptos, que se tornam independentes do observador, sobrevivendo ao tempo, como blocos de afetos e sensações. Nesse sentido, o percepto é uma espécie de condensação de experiência sensível que a arte materializa, permitindo que os espectadores entrem em contato com um conjunto de sensações que existem por si mesmas, sem precisar ser reduzidas a uma interpretação pessoal.
Assim, o percepto está intrinsecamente relacionado à ideia de que a arte não representa o mundo, mas cria novos modos de sentir e experimentar a realidade — e isso, claro, respira com força em um espaço como o auroras.
“No início deste ano, Green passou duas semanas hospedada no auroras com o objetivo de refletir sobre o que apresentar em sua primeira exposição no Brasil. A arquitetura modernista do espaço a remeteu à exposição que fez na Schindler House (Los Angeles) em 2015, o que a levou a incluir trabalhos diretamente relacionados ao arquiteto austríaco Rudolf Schindler (1887-1953), pioneiro da arquitetura modernista que imigrou para os EUA por causa da guerra. Green traça essas relações entre os dois espaços e seus deslocamentos, explorando não apenas a estética, mas também a filosofia que atravessa sua arquitetura, favorecendo um diálogo orgânico entre ambos. Mas acredito que sua relação pessoal com o Brasil através do irmão Derrick Green, vocalista da banda Sepultura desde 1998, seja a mais importante influência na seleção de trabalhos.”
A própria presença da exposição em terras brasileiras suscita um sem-fim de interpretações. A relação de Renée com o país é única e bastante enraizada. Come Closer, um curta-metragem feito em 2008, aborda suas conexões com o mundo lusófono e sua experiência de vida em Portugal. Quando se adentra o auroras, os visitantes são imediatamente envolvidos por esse trabalho, que estabelece o tom da exposição, servindo como uma meditação sobre a distância e a conexão, e tecendo uma rede afetiva entre cidades como Lisboa, São Francisco e locais do Brasil. Com uma narração em português, a obra destaca a complexidade das relações entrelaçadas entre os povos e a história, refletindo a relação contínua de Green com o mundo lusófono. A artista examina os vestígios do colonialismo, promovendo diálogos entre o passado e o presente, oferecendo uma rica exploração de temas que envolvem a arquitetura e a diáspora. E essa relação com o mundo lusófono segue. No hall de entrada, Relações: Megahertz, Megastar, Brother, Brasil (2009) apresenta banners suspensos que traçam os fluxos da diáspora africana e suas influências na música e cultura popular brasileira. Este conjunto é acompanhado por um elemento escultórico, que apresenta um vídeo em um iPod, onde Green tenta “se aproximar” de seu irmão. A obra não só explora distâncias físicas, mas também as conexões emocionais e culturais que transcendem fronteiras.
No coração da mostra está o filme Begin Again, Begin Again (2015), que reflete sobre a vida e a morte ao longo de um intervalo de 128 anos, evocando o trabalho do arquiteto R.M. Schindler, como apontou Ricardo. A narrativa, marcada por afirmações numeradas, é interrompida por uma consciência que divaga sobre a estranheza da sobrevivência. No jardim do auroras, uma voz oculta sussurra sobre jardins desaparecidos, criando um ambiente contemplativo que ressoa com os temas de perda, memória e a busca por conexão. Tudo parece se complementar com uma harmonia que sussurra realidades intrincadas com suavidade e clareza.
“Apesar de incluir trabalhos das últimas três décadas, a exposição foi inteiramente pensada pela artista levando em consideração as especificidades da casa, e oferece ao público a oportunidade singular de navegar pela obra da artista de forma contextualizada. Você vai ver obras que falam de modernismo em uma casa modernista, ouvir uma obra sonora sobre o desaparecimento de jardins em um jardim tropical e ler um space poem que envolve os escritos de Borges dentro de uma biblioteca. Em última instância, o trabalho de Renée é sobre questões humanas, e ver essa exposição dentro de uma casa oferece uma perspectiva distinta, mais meditativa.”
Com esta exposição, além de apresentar sua obra a um público novo, Renée Green também estabelece um diálogo profundo com o contexto brasileiro, explorando questões de identidade, memória e as complexidades da diáspora. E, sendo o hóspede de um corpo de um trabalho assim, o auroras se torna um espaço de reflexão e descoberta, onde a visão da artista provoca uma reconsideração do passado e suas repercussões no presente e no futuro.
“Desde a sua fundação em 2016, o espaço trouxe diversas artistas internacionais que jamais haviam mostrado no Brasil, como Cecily Brown, Amy Sillman, Tom Burr, Sarah Crowner e Terry Winters”, conta Ricardo pensando justamente no que já foi e no que está por vir. “Para os próximos dois anos, estamos planejando a primeira mostra no Brasil da alemã Charline von Heyl e dos estadunidenses Jacqueline Humphries e Richard Aldrich, além de uma exposição do músico Arto Lindsay”, conclui, antecipando o que está por vir.
Aproxime-se: Perceptos
Sábado, das 11h às 18h, até 30 Novembro
— Avenida São Valério, 426, Morumbi. Gratuito