Aproxime-se: Perceptos, exposição de Renée Green, no espaço auroras, em São Paulo. Cortesia de auroras e Free Agent Media.
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Arte e diáspora: Renée Green e os passados que insistem em acontecer

Renée Green é uma artista visual, escritora, cineasta e professora norte-americana, cuja prática multidisciplinar abrange escultura, arquitetura, fotografia, vídeo e experiências sonoras, frequentemente culminando em instalações complexas e envolventes. Seu trabalho é profundamente ancorado em pesquisas de antropologia cultural e história social, explorando temas como a figura de Sarah Baartman — mulher sul-africana conhecida como “Vênus Hotentote”, exibida como atração de circo no século XIX —, a história da escravidão, o modernismo arquitetônico e a cultura hip hop.

Space Poem #10 (Anos/Depois), 2024.

Green investiga a relação entre arte e história, utilizando colaborações e arquivos como ferramentas de reflexão e criação. Um bom exemplo disso é seu trabalho lançado em 2014, Other Planes of There: Selected Writings, uma coletânea de textos escritos entre 1981 e 2010, que parte da prática arquivística como ferramenta artística. Além de numerosas exposições individuais e coletivas em museus de renome ao redor do mundo, Green é também uma escritora prolífica, com contribuições regulares em publicações influentes como a October, de Massachusetts, nos Estados Unidos, e Texte zur Kunst, da Alemanha.

A exposição Aproxime-se: Perceptos, realizada no espaço cultural auroras, em São Paulo, é a epítome de tudo que a define como artista e ativista — uma síntese assombrosa, tanto pela excelência com que é realizada quanto pelas questões profundas e inquietantes que expõe.

 “Trazer a exposição de uma artista internacional como Renée Green para o auroras”, reflete Ricardo Kugelmas, fundador do espaço, “tem um impacto significativo, tanto para o público quanto para o debate sobre questões ligadas à diáspora africana e fluxos culturais dela decorrentes. Renée Green, com sua trajetória de mais de três décadas, tem uma abordagem profundamente reflexiva e crítica sobre a circulação de pessoas, culturas e narrativas. Sua obra oferece um espaço para pensar essas complexas intersecções de maneira que não é panfletária, mas altamente poética e visualmente rica. Essa exposição não só expande as conversas sobre diversidade racial na arte contemporânea, mas também desafia o público a considerar como essas questões estão presentes nas dinâmicas sociais e culturais brasileiras.”

Estreia de Green no Brasil, a exposição tem as temáticas de colonialismo, diáspora e migração muito presentes, exploradas através de múltiplos meios artísticos, como instalações, vídeos, pinturas e esculturas. Um dos destaques de Aproxime-se: Perceptos, aliás, é a obra Commemorative Toile (Brasil), em que a artista estampa poltronas modernistas com imagens que retratam cenas de resistência escravagista, incluindo episódios da Revolução Haitiana. 

Detalhe de Comemmorative Toile (Brazil). Foto de Free Agent Media.

Essas poltronas, mais que simples objetos decorativos, funcionam como veículos de memória, refletindo a complexidade da história colonial. Ver algo assim estampado em uma peça de mobiliário é perturbador, pois naturaliza violências históricas e, de certa forma, as eleva ao nível canônico, quase religioso. Ter essas imagens duras em objetos que usamos no cotidiano é um lembrete aterrorizante de como essas brutalidades podem se infiltrar nas nossas vidas, tornando-se parte do tecido da realidade.

Obra Commemorative Toile (Brazil). Foto de Ding Musa.

“A poética na obra de Renée Green”, corrobora Ricardo, esmiuçando a produção da artista, “está profundamente ligada ao conceito de ‘relações’, que serve como fio condutor em sua produção multimídia. Renée entrelaça sua história pessoal e seus interesses com correntes culturais e intelectuais mais amplas, criando uma interconexão rica entre poesia, literatura, filosofia, história, música e arquitetura. Sua abordagem ressalta como, ao longo dos tempos, símbolos são criados e circulam, moldando e sendo moldados pelas experiências humanas.”

E pensar nessas questões a partir de diferentes mídias, para muito além do mobiliário, torna tudo ainda mais complexo. “Esse interesse pelas diferentes linguagens e etimologias reflete um entendimento profundo das dinâmicas de poder e resistência que permeiam as narrativas da diáspora africana. Green utiliza essa poética não apenas como uma estética, mas como um meio de explorar a intersecção de identidades, culturas e histórias. Uma das partes mais interessantes do trabalho de Renée é o fato dela intencionalmente provocar a auto reflexão e uma livre interpretação pelo público, vide o título da mostra: ‘Aproxime-se: Perceptos.’”

A carreira de Green, marcada pela abordagem interdisciplinar, também lança mão da poesia. Os “Space Poems” da exposição, cartazes fixados de maneira aparentemente desconexa, convidam as pessoas a criar novas narrativas conforme são lidos e relidos com inúmeras possibilidades de sequências. Renée, que também é professora no MIT, apresenta uma visão que desafia fronteiras entre tempo e espaço, sugerindo até uma alteração na ordem do tempo, questionando e reinterpretando narrativas históricas de migração e exílio. Ao longo da exposição, como apontou Ricardo Kugelmas, essas obras não impõem significados específicos, mas incentivam o público a explorar suas percepções pessoais, ecoando o conceito filosófico de perceptos, como teorizado por Gilles Deleuze. 

Série Space Poem #11 (The Equator Has Moved), 2024.

O conceito, desenvolvido junto com Félix Guattari, está relacionado à filosofia da arte e à maneira como a percepção é tratada nas obras artísticas, especialmente na literatura e nas artes visuais. Segundo Deleuze, o percepto não é apenas a percepção direta de algo, mas sim uma realidade sensível capturada pela arte e que existe além de uma simples percepção individual ou subjetiva. Diferente do conceito de percepção, que está ligada a um sujeito que percebe, o percepto está ligado à própria obra de arte que gera um bloco de sensações autônomo. Ou seja, o artista tem a capacidade de capturar e criar perceptos, que se tornam independentes do observador, sobrevivendo ao tempo, como blocos de afetos e sensações. Nesse sentido, o percepto é uma espécie de condensação de experiência sensível que a arte materializa, permitindo que os espectadores entrem em contato com um conjunto de sensações que existem por si mesmas, sem precisar ser reduzidas a uma interpretação pessoal.

Assim, o percepto está intrinsecamente relacionado à ideia de que a arte não representa o mundo, mas cria novos modos de sentir e experimentar a realidade — e isso, claro, respira com força em um espaço como o auroras.

Série Space Poem #11 (The Equator Has Moved), 2024

“No início deste ano, Green passou duas semanas hospedada no auroras com o objetivo de refletir sobre o que apresentar em sua primeira exposição no Brasil. A arquitetura modernista do espaço a remeteu à exposição que fez na Schindler House (Los Angeles) em 2015, o que a levou a incluir trabalhos diretamente relacionados ao arquiteto austríaco Rudolf Schindler (1887-1953), pioneiro da arquitetura modernista que imigrou para os EUA por causa da guerra. Green traça essas relações entre os dois espaços e seus deslocamentos, explorando não apenas a estética, mas também a filosofia que atravessa sua arquitetura, favorecendo um diálogo orgânico entre ambos. Mas acredito que sua relação pessoal com o Brasil através do irmão Derrick Green, vocalista da banda Sepultura desde 1998, seja a mais importante influência na seleção de trabalhos.”

A própria presença da exposição em terras brasileiras suscita um sem-fim de interpretações. A relação de Renée com o país é única e bastante enraizada. Come Closer, um curta-metragem feito em 2008, aborda suas conexões com o mundo lusófono e sua experiência de vida em Portugal. Quando se adentra o auroras, os visitantes são imediatamente envolvidos por esse trabalho, que estabelece o tom da exposição, servindo como uma meditação sobre a distância e a conexão, e tecendo uma rede afetiva entre cidades como Lisboa, São Francisco e locais do Brasil. Com uma narração em português, a obra destaca a complexidade das relações entrelaçadas entre os povos e a história, refletindo a relação contínua de Green com o mundo lusófono. A artista examina os vestígios do colonialismo, promovendo diálogos entre o passado e o presente, oferecendo uma rica exploração de temas que envolvem a arquitetura e a diáspora. E essa relação com o mundo lusófono segue. No hall de entrada, Relações: Megahertz, Megastar, Brother, Brasil (2009) apresenta banners suspensos que traçam os fluxos da diáspora africana e suas influências na música e cultura popular brasileira. Este conjunto é acompanhado por um elemento escultórico, que apresenta um vídeo em um iPod, onde Green tenta “se aproximar” de seu irmão. A obra não só explora distâncias físicas, mas também as conexões emocionais e culturais que transcendem fronteiras.

No coração da mostra está o filme Begin Again, Begin Again (2015), que reflete sobre a vida e a morte ao longo de um intervalo de 128 anos, evocando o trabalho do arquiteto R.M. Schindler, como apontou Ricardo. A narrativa, marcada por afirmações numeradas, é interrompida por uma consciência que divaga sobre a estranheza da sobrevivência. No jardim do auroras, uma voz oculta sussurra sobre jardins desaparecidos, criando um ambiente contemplativo que ressoa com os temas de perda, memória e a busca por conexão. Tudo parece se complementar com uma harmonia que sussurra realidades intrincadas com suavidade e clareza.

“Apesar de incluir trabalhos das últimas três décadas, a exposição foi inteiramente pensada pela artista levando em consideração as especificidades da casa, e oferece ao público a oportunidade singular de navegar pela obra da artista de forma contextualizada. Você vai ver obras que falam de modernismo em uma casa modernista, ouvir uma obra sonora sobre o desaparecimento de jardins em um jardim tropical e ler um space poem que envolve os escritos de Borges dentro de uma biblioteca. Em última instância, o trabalho de Renée é sobre questões humanas, e ver essa exposição dentro de uma casa oferece uma perspectiva distinta, mais meditativa.”

Com esta exposição, além de apresentar sua obra a um público novo, Renée Green também estabelece um diálogo profundo com o contexto brasileiro, explorando questões de identidade, memória e as complexidades da diáspora. E, sendo o hóspede de um corpo de um trabalho assim, o auroras se torna um espaço de reflexão e descoberta, onde a visão da artista provoca uma reconsideração do passado e suas repercussões no presente e no futuro. 

“Desde a sua fundação em 2016, o espaço trouxe diversas artistas internacionais que jamais haviam mostrado no Brasil, como Cecily Brown, Amy Sillman, Tom Burr, Sarah Crowner e Terry Winters”, conta Ricardo pensando justamente no que já foi e no que está por vir. “Para os próximos dois anos, estamos planejando a primeira mostra no Brasil da alemã Charline von Heyl e dos estadunidenses Jacqueline Humphries e Richard Aldrich, além de uma exposição do músico Arto Lindsay”, conclui, antecipando o que está por vir.


Aproxime-se: Perceptos
Sábado, das 11h às 18h, até 30 Novembro
— Avenida São Valério, 426, Morumbi. Gratuito