Family, de Masahisa Fukase. Cortesia de Image Masahisa Fukase archives e MACK.
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Masahisa Fukase e a poética da desintegração

Conteúdo exclusivo da edição digital Família — Amarello 50

Em um verão do início da década de setenta, Masahisa Fukase (1934 – 2012), um dos maiores nomes da fotografia moderna japonesa, voltou para sua cidade natal em Bifuka, Hokkaido. Depois de ter ficado quase vinte anos em Tóquio, um período em que fez ensaios para inúmeras revistas e se tornou um nome importante da cena avant-garde do país, o retorno, além de um movimento geográfico, constituía uma travessia emocional em direção às suas raízes e à complexidade das relações familiares. Em 1971, ele iniciou uma série de retratos da própria família no estúdio fotográfico dos pais, que viria a se tornar uma das obras mais celebradas, e doloridas, de sua carreira. 

Ao longo das duas décadas seguintes, esses retratos, que começaram como uma exploração simples, quiçá até despretensiosa, das dinâmicas familiares, transformaram-se em monumentos de perdas, de fracassos e, sobretudo, da eterna capacidade da fotografia de congelar momentos e capturar tanto a vida quanto a morte — a morte enquanto em vida e a vida enquanto em morte.

Ao lado de nomes como Shomei Tomatsu, Daido Moriyama e Nobuyoshi Araki, Fukase desafiou as fronteiras tradicionais da fotografia, elevando-a de uma prática documental a uma forma de arte introspectiva, pessoal e perturbadora. Seu trabalho, caracterizado por uma fusão de melancolia e intensidade de emoções, muitas vezes explorava sua vida como matéria-prima. Em sua série mais famosa, Karasu (Corvos), de 1986, usou imagens sombrias da ave para simbolizar a devastação emocional de seu divórcio de Yoko, sua segunda esposa. Mas, com Kazoku (Família), expandiu suas narrativas sentimentais a um grupo maior, justamente aquele conjunto de pessoas com quem compartilhava sangue, numa espécie de veneração fúnebre às atribulações familiares e à inevitável erosão da vida.

O ambiente em que Kazoku foi criado não poderia ser mais simbólico. A família Fukase geria um estúdio de fotografia tradicional em Bifuka, onde, desde cedo, Masahisa foi exposto ao mundo da fotografia. O jovem, no entanto, nunca sentiu-se completamente à vontade com essa tradição, pelo menos não com a visão negocial e praticamente não-artística que o estúdio da família lhe impunha. Desde os seis anos, ele era incumbido de lavar as fotos em um pequeno quarto escuro, aquecido por um braseiro de carvão e impregnado pelo cheiro ácido de vinagre. Aquilo, para ele, tinha uma aura de opressão, uma herança familiar que ele parecia destinado a rejeitar.

Em um ensaio escrito em 1991, Fukase refletiu sobre a escolha que fez ao sair de casa para estudar na Nihon University College of Art, em Tóquio. De acordo com o próprio, ele se via dividido entre seguir a carreira de shashin-shi (fotógrafo de estúdio) ou shashin-ka (um fotógrafo-artista no sentido moderno). Embora tenha optado pela última, a conexão com suas raízes e o estúdio familiar continuava a assombrá-lo, até porque fez questão de se manter no mundo da fotografia. Assim, ao retornar em 1971, ele voltou também aos braços desses fantasmas emocionais banhados a sulfito de sódio que o acompanhavam.

Os primeiros retratos da série são, à primeira vista, convencionais. Eles mostram o núcleo familiar de Fukase: seus pais, Sukezo e Mitsue, seu irmão Toshiteru, sua irmã Kanako e seus sobrinhos. A atmosfera é quase reconfortante, à moda de retratos familiares, com os pais sorridentes e todos reunidos. No entanto, a presença de Yoko introduz uma camada perturbadora (ainda mais conhecendo, em retrospecto, o tom pesaroso da série Karasu). Em uma das imagens, ela aparece usando apenas um koshimaki — faixa de algodão tradicional usada debaixo de kimonos — com os longos cabelos cobrindo o peito nu. Essa justaposição entre a formalidade da fotografia familiar e a nudez de Yoko sugere uma tensão subjacente, uma ruptura entre tradição e modernidade, entre o que é visto e o que permanece oculto. Os corvos já grasnavam alto naquelas sonorizações imagéticas.

Essa tensão segue pulsando em variações subsequentes da mesma cena. Em outro registro, Yoko está de costas para a câmera enquanto o resto da família olha diretamente para a lente; em outro momento, é a família que se vira de costas enquanto Yoko encara a câmera. Esses jogos de perspectivas sugerem não apenas o papel da fotografia como mediadora entre o fotógrafo e o objeto fotografado, mas também a alienação crescente de Fukase em relação a Yoko e aos outros ao seu redor. A relação deles, era claro, se deteriorava. Logo após essas fotos, ela o deixaria, citando a fotografia como a barreira que os separava. “Nos dez anos de nosso casamento”, escreveu em 1973, “ele só me viu através da lente de uma câmera, nunca sem ela.”

As imagens refletem uma dor silenciosa e sutil, ladeadas por uma certa dose de teatralidade, com Fukase incorporando bailarinas e atrizes seminuas para posar ao lado de seus familiares. Essas cenas, ainda que chamativos jogos visuais, não podem ser dissociadas do processo de autodescoberta e autoanálise que permeia o trabalho. Ele costumava dizer que seu material de trabalho sempre começava “com o que está mais próximo, com as pessoas que posso alcançar e tocar.” A dor, para todos os efeitos, era próxima o suficiente para que pudesse ser tocada por ele.

Conforme os anos passaram, a série Kazoku muda de tom. A jovialidade dos primeiros retratos é aos poucos substituída por uma atmosfera turva de perda e luto. A família Fukase começa a encolher. Em um dos retratos mais pungentes, sua irmã Kanako segura um retrato de sua filha Miyako, que morreu aos cinco anos. Dois anos depois, a mesma composição é repetida, mas desta vez com Kanako segurando uma foto do pai de Fukase, que também falecera. A progressão das imagens revela a história mais antiga, inevitável e lamentável: o desaparecimento gradual da vida e o esfacelamento da estrutura familiar.

Em 1987, depois da partida de seu pai, a fotografia final da série é uma composição sombria e silenciosa, com sua mãe, Mitsue, sentada em um banco, curvada pela idade e pelo peso do luto, acompanhada apenas por seus filhos e o retrato de seu falecido marido. A imagem parece marcar o fim de uma era,  tanto para a família quanto para o estúdio, que logo fecharia as portas.

O fotógrafo, por sua vez, também estava próximo do fim de sua jornada artística. Pouco depois dessa fotografia, ele sofreu uma queda em seu bar favorito, um incidente que o deixaria em coma por mais de duas décadas, até sua morte em 2012. O ciclo de vida que ele documentou em Kazoku se fechou de forma trágica, com o próprio fotógrafo sendo aprisionado em um estado de animação suspensa, incapaz de continuar seu trabalho ou de interagir com o mundo.

O que torna a obra de Masahisa Fukase tão comovente é a capacidade de transformar momentos aparentemente comuns em meditações poéticas sobre a existência humana. A série Kazoku, exemplo categórico disso, evoluiu para um estudo complexo sobre o tempo, a memória e a inevitabilidade da morte. Cada fotografia capturava um momento de vida, mas, ao mesmo tempo, prenunciava a transitoriedade dessa mesma vida, congelando-a no tempo para sempre. Ao documentar o apagar paulatino de sua família, Fukase fez ressoar um coro angelical e trágico que sibila em alto e bom som que a fotografia não é apenas sobre o que vemos, mas sobre o que não vemos, sobre as ausências que tanto insistem em preencher nossas vidas com lástima.

Kazoku é um testemunho visual de como o tempo corrói laços, esvazia ambientes e submerge cada um de nós em uma sequência inevitável de perdas. Cada retrato parece estar impregnado da ideia de que o ato de fotografar é, em si, um lamento. Foi assim que criou uma poética da desintegração. As fotografias de Kazoku não são meras imagens, são vestígios. O sorriso congelado de sua mãe, o olhar distante de seus irmãos, as crianças que não mais crescerão — tudo isso existe dentro dos limites da moldura, mas é o que está fora dela, o que foi apagado ou nunca poderá ser recuperado, que nos envolve. 

Fukase, em seu trágico e irônico coma, se tornou uma espécie de emblema de sua obra: paralisado entre o presente de seu corpo e o futuro de sua alma, entre o fechar e o abrir de olhos, entre a vida e a morte. E, como nas páginas de um álbum de família antigo, que começa a desbotar e a desintegrar com o passar do tempo, Kazoku e o trabalho de Fukase como um todo permanecem como uma prova de que, embora possamos tentar capturar o presente com a câmera, é o eco do que foi perdido, daquilo que escapa pela borda da fotografia, que realmente define nossas vidas.


Imagens de Family/Kazoku (2019), de Masahisa Fukase, publicado por MACK