Um cafezinho com Cris Borges
Fotos de Derek Fernandes
Tomar café na casa de alguém é um convite para conhecer profundamente essa pessoa. Nossa casa é a casca que nos proteje do mundo. Ela é parte importante de nossa cultura particular, e reflete a maneira como enxergamos e gostaríamos de nos inserir no mundo.
Aqui, dividimos casas de pessoas que gostam de casa. Que têm suas casas vivas, cheias de objetos que contam a história de uma vida, sem um lugar perene em seus espaços.
Cristina Borges é arquiteta e designer de interiores. Morou na Gávea, no Rio de Janeiro, por muito tempo, até se apaixonar por Copacabana, em um apartamento de família, a ponto de nunca mais querer sair de lá.
Cris, me conta quando e como começou a relação com este apartamento.
Este prédio foi construído pelo meu bisavô em 1928, ou seja, daqui a quatro anos ele completa cem anos. O prédio sempre foi inteiramente da minha família, até que, de uns trinta anos para cá, meu tio vendeu as duas unidades dele, meu tio-avô morreu, deixou parte para os seus sobrinhos, deu uma diluída. Hoje em dia, proprietário, da família, temos três. Como a vida inteira eu morei na Gávea, Copacabana era uma coisa distante da minha vida. Eu tinha horror a Copacabana, era uma coisa que me exasperava só de pensar. Mas sempre amei esta cobertura. Quando minha tia-avó morreu, minha mãe comprou do herdeiro dela e ficou alugando a vida toda.
Apesar de eu achar o apartamento em si muito jeitoso, não via ele como moradia. Morava numa casa feita por mim, um projeto meu em que juntei duas casas de vila em uma, fiz uma super casa. E aí, a vida mudou, eu me separei, meu marido faliu, eu fiquei ali segurando, segurando, até que chegou um ponto que não se justificava mais morar numa casa na Gávea, com dois filhos na PUC consumindo tudo que eu botava dentro de casa. Foi quando conversei com a minha mãe e peguei o apartamento, fiz as reformas necessárias e aluguei a minha casa da Gávea. Com o aluguel da casa da Gávea, fiz toda a obra primordial daqui, que era toda a parte de elétrica, de encanamento… E assim vim para cá com os dois meninos. Um depois foi embora, ficou morando com o pai e, na pandemia, voltou.
O que você acha que este apartamento te oferece, em termos de conforto e bem-estar?
Antes de mais nada, podemos falar do ponto. Eu não tenho mais carro. Eu desço e sou praticamente atropelada pelos táxis. Fora que tem Uber também, então isso foi um salto na qualidade de vida para mim, parar de dirigir nesta cidade. Em Copacabana, você dá uma volta no quarteirão e é como se desse uma volta ao mundo, tem mexicano, português, italiano, árabe, brasileiro, bistrô, a quilo e, às quintas-feiras, ainda tem a feira. Para mim, que tenho um pouquinho de TOC de arrumação de geladeira, manter a minha semivazia é uma bênção.
Isso é o ponto número um. Número dois, a vista. Número três, a arquitetura do apartamento: são três metros e trinta de pé direito. Mesmo que eu não tivesse o mezanino, já seria uma glória. Essa arquitetura me favorece muito, e eu agradeço demais por morar num lugar tão lindo. Além disso, estou há oito minutos do aeroporto. Eu tive uma loja no MAM, então eu sei que são oito minutos mesmo. E ainda tem o clube Marimbás, de que eu sou sócia, e o namorado, que mora no posto seis. Então, entre o posto dois e o posto seis, tenho tudo que posso querer ter. Sair daqui, nem pensar.
E você frequenta a praia?
Vou à praia todo santo dia.
Você mergulha?
Mergulho, dependendo do dia. Hoje está frio. Mergulho, imagine, pego sol. Sou do tipo que ainda se bronzeia.
Como você acha que a sua profissão influencia no seu gosto pessoal? E como foi a evolução desse gosto?
Completamente. Eu nasci e fui criada dentro de obra. Eu morei numa das casas mais bonitas da Gávea, do tempo dela. Meu avô era uma pessoa muito sofisticada, foi um dos dez [homens] mais elegantes, teve o primeiro carro, o primeiro pastor-alemão, era um dândi. Basta dizer que meu pai nasceu no Parque da Cidade, que era a casa dele, e depois ele vendeu pros Guinle, e os Guinle doaram para a cidade para fazerem o parque. Então, eu acho que nasci e fui criada nesse berço bacana, chique, uma coisa quase minimalista. A casa do meu avô era imensa, mas tinha dois sofás numa sala e no outro canto um recamier.
Devia ser muito moderno para a época. A gente não pensa em um lugar minimalista atrelado àquela época. A gente está falando de que década?
Minha avó nasceu em 1900, então, década de 20.
Devia ser muito arrojada a casa para a época. Imagina! Na mesma época este prédio aqui estava sendo construído, todo neoclássico.
A casa até que não era muito estilosa por fora, não, mas por dentro… Minha avó e meu avô eram loucos por jardim, foi um francês que fez todo o paisagismo. Essa coisa do jardim eu acho que herdei deles. A coisa do belo eu acho que herdei dos dois lados, porque, pelo lado da minha mãe, a minha avó também era louca por jardim. Não tinha, naturalmente, o poder aquisitivo do outro lado, porém, quando [ela] fez a casa dela, chamou o Carlos Leão para ser o arquiteto, então a casa era toda jeitosinha — pequena, dentro de um lote no Humaitá, mas era uma casa muito bem arrumada. E a arte entra porque meus tios têm uma galeria de arte. A dona deste apartamento aqui, que era irmã da minha avó, era sócia dos meus tios numa galeria no Copacabana Palace, a Galeria de Arte Ipanema. Depois que ela saiu da sociedade, era o tio mais velho e, depois, entrou o tio mais moço, e ficaram eles dois. Eles fizeram a Galeria de Arte Ipanema, em Ipanema, que ainda existe. Hoje, eu particularmente acho que a obra que foi feita não serve para galeria, mas está lá a galeria, com um pé direito que você quase raspa a cabeça. Quando inaugurou, tinha um Lescher lá no fundo, que você via cortado pelo meio. Tudo bem, ali tinha um pé-direito para ele caber, mas o resto da galeria…
Então, isso me moldou como ser humano. Eu amo o belo, quer dizer, o belo que eu entendo como belo. Quem ama o feio, bonito lhe parece. Então eu procuro viajar, estou sempre comprando coisas, sempre trazendo coisas.
Muito provavelmente esse ambiente em que você nasceu e viveu, desde sempre, te levou à sua profissão.
Provavelmente. Mas eu acredito que existe uma aptidão também. Porque eu não fiz faculdade e não me formei arquiteta, mas, desde garota, fazia maquetes com as caixas de sapato. Sempre gostei disso. Meu quarto, quando criança, nunca foi o mesmo por mais de três meses. Este apartamento, até eu entender ele, foi 280 coisas diferentes.
Você ia acrescentando peças ou mexia 280 vezes com as mesmas coisas?
Mudou assim: quando eu me mudei, eu não tinha sofá, eu tinha uns bancos que eu mandei fazer no Fernando Mendes para a casa da Gávea, que eram quatro metros de banco, dois de dois metros, e neles eu tinha televisão, CD — a gente tinha CD na época, então eram pilhas de CD.
Precisava desse espaço.
Eram bancos de setenta centímetros por dois metros que, juntos, faziam os quatro metros. E aí eu acabei mandando eles para a Bahia, porque eu usava ali, mas era muito grande para o todo, e esse negócio eu joguei ali, porque não cabia. Eu não posso ter nada, conforme te digo, eu não posso comprar objeto de mesa, por exemplo. Quando eu tirei essas portas aqui, tinha uma prateleira em cima, onde eu tinha várias coisas que tive que levar para a Bahia, porque eu não tinha onde botar. Até a minha sereia, que eu não levei porque estou com medo de ela enferrujar toda. A sereia ficava aqui, que eram só coisas do mar, tinha um Artur Baglio, que era uma mulher embaixo d’água, esse Vasarely ficava ali também, tinha aqueles negócios de vela que eu trouxe do Egito e que, sempre que recebia alguém, acendia. Agora não tenho onde botar, foi para debaixo da escada.
Como você acha que o seu gosto se desenvolveu ao longo de todos esses anos?
Eu acho que, quanto mais você viaja, quanto mais você vê coisas que têm um foco, muita arquitetura… Sou louca por arquitetura tanto quanto sou por arte. E por jardins. Por exemplo, eu fui a Londres, passei quatro dias em Londres, um dia inteiro foi no Kew Gardens, que é lindo, uma coisa imperdível. Já fui aos jardins botânicos em Nova Iorque, em Berlim, em todo lugar que eu vou. Em Berlim, Sanssouci, o que é aquilo? Você já foi? É a coisa mais linda. Era para o filho gay do rei sei lá das quantas. Ele construiu para isolar o filho, desaparecer com ele da corte, entendeu? E é deslumbrante, na frente tem uns degraus, uns patamares. Aí eu comecei a reparar que tinha uns armários incrustados. Eram hortas no inverno, todas envidraçadas, mas incrustadas nos patamares, para dentro. Uma coisa, uma beleza. Pagode chinês. Olha…
Lá no Kew Gardens, você foi naquele pavilhão da ilustradora? Como que ela chama?
Margaret Mee. Gente, qualquer lugar naquele Kew Gardens.
Então, acho que viajar te joga numa coisa diferenciada. Tudo bem, eu nasci e fui criada na Bocaina, que é um lugar selvagem, virgem. Então eu acho que a minha vida sempre foi permeada entre o muito sofisticado e o muito rude.
É bom, porque tem a natureza completamente interligada.
A gente é raiz, meu pai era mergulhador, foi pentacampeão mundial de caça submarina, foi um dos fundadores do Marimbás. Ele era da equipe dos Marimbás, com Santarelli, Bruno Hermanny, era da turma deles, meu tio João [também]. Viajaram o mundo inteiro caçando. Então eu acho que esse lado bem raiz está no meu sangue por conta do meu pai. E por conta da minha avó também.
Avó de pai?
Avó de pai. Meu avô caçava. Ele conseguiu achar a Bocaina caçando. Comprou aquilo tudo, fez um barraco só para pernoite. E aí depois o meu pai foi evoluindo e fez a lodge, meu irmão depois pegou e fez uma pousada, que ele teve durante anos. E aí, quando ele encheu o saco da pousada, fechou, e agora é a nossa fazenda de novo.
Trabalhando com arquitetura e decoração, ou seja, fazendo casa para os outros, o que você acha que deixa uma casa única?
A personalidade do proprietário.
Às vezes, ele não consegue colocar isso na casa, você não acha?
Eu acho que se ele tem um mínimo de cultura e personalidade, consegue. Eu já fiz apartamento para clientes que eu não gostei, mas eles amaram. Então o meu compromisso não é comigo, não é a minha autoria, é fazer um lar para quem vai morar nele. Por exemplo, eu não sou uma pessoa que entra na casa de uma pessoa e manda jogar tudo fora e vamos fazer tudo [de novo]… “Móvel? Nem pensar, marcenaria, porque é onde se ganha muito dinheiro”. Eu faço a casa dos outros, não a minha. Eu já cansei de entrar em casa que você [diz] “isto aqui é uma casa do Cláudio”, “esta aqui é a casa do Eric”. Eu não quero entrar na casa dos outros. Tem uma história do Cláudio muito engraçada, que, quando ele foi fazer o apartamento do Caetano, a Paula começou, “Olha, eu queria que você visse o teto do meu vizinho aqui de baixo, que no vizinho de cima tem não sei o quê”. Ele olhou para ela e falou assim: “Faz uma coisa, Paula, chama o arquiteto dele”.
O que você acha que torna uma casa brasileira?
Linho, algodão, tem gente que põe brocado — isso é uma moda que eu acho que já passou. Casa brasileira é palha, madeira, e eu acho que ventiladores de teto, uma coisa bem tropical. Cores claras. Depende se a pessoa não gosta de quadro, não tem apreço por comprar arte, aí eu entraria com uma estampa. Talvez uma cor na parede; espelhos, se tem vista. Porque eu acho o uso do espelho extremamente perigoso, pode ficar um monstro e pode ficar lindo. Quando o espelho serve para abrir uma janela, estou dentro; esconder uma coluna, tudo bem. Agora, quando é um espelho tipo decorativo, para não refletir nada, no meu pensar, já cai na cafonice. Mas eu uso, eu gosto de espelho no ambiente, acho que favorece.
Fica uma casa muito adequada ao clima, sim. E, obviamente, falamos muito aqui no domínio da culinária. Qual você acha que é o papel da comida e da alimentação dentro de uma casa?
Eu acho que o agregador da família é a comida, sem a menor dúvida. O que junta é a mesa. E é o que talvez falte muito nos dias atuais, aquele momento de as pessoas se olharem e conversarem, contarem como é que foi o dia, como é que vai ser — se for almoço, como é que vai ser dali para frente… E eu acho que isso é um movimento que está acontecendo. Ontem, por exemplo, eu tentei desmarcar um dentista e não consegui, porque eles agora têm hora de almoço. Acho que é muito importante esse countdown, e a mesa é tudo numa casa. Eu fiz um apartamento, uma vez, que a mulher me disse: “Eu não quero sala de jantar, não, aqui a gente come de bandeja”. Eu falei: “Tudo bem, dá para fazer”. Mas que pena, porque era uma mulher com três filhos, sem marido — sei lá do marido, podia ser separada —, mas cada um comia numa hora, com uma bandeja e vendo televisão. É um desperdício monstruoso de aproximação para uma família. Para mim, a parte da cozinha… Inclusive, ter uma cozinha participativa seria melhor ainda, não ter aquela cozinha…
Ali, você vai estar vendo. Ela é participativa no sentido de as pessoas cozinharem juntas, isso eu acho muito interessante. Meus filhos, desde que ficaram em pé, eu empurrava a cadeira para o fogão e eles cozinhavam comigo. Sabem fazer tudo.
Hoje eles cozinham?
Tudo.
É fundamental isso, a gente ganha muita autonomia na vida. Não é só autonomia para saber se alimentar bem, com qualidade e ter saúde, mas acho que a cozinha ensina muita autonomia de vida para a gente.
Total. Porque você come o que você quer. Ter uma boa cozinha, os ingredientes bons… Você tem isso se a mãe tem esse conceito. Eu nunca tive pacote dentro de casa. Podendo, não tenho. Só, assim, quando era para a merenda dos meninos. Até o meu filho pedir para parar de mandar merenda, porque os colegas ficavam invejando a merenda dele, era muito chato. Fazia tudo bonitinho, um chocolatinho, um sanduichinho, um Toddynho ou uma água de coco, qualquer coisa, e mandava. Porque tinha dois recreios, um para comer e outro para brincar. E o de comer não dava tempo se a pessoa ficasse na fila, ela não conseguia chegar e comer. Então eu mandava. Aí começou a causar problema com os colegas e eu parei.
E o que você acha que a palavra “casa” significa? Quer dizer, o que significa para você?
Eu li uma definição do Hélio Oiticica uma vez, ele falava que a casa… Não lembro se era a casa ou era a casca do ovo, e nós somos o núcleo do ovo. Então, eu acho que a casa é isso, é o lugar que te protege, te abriga, te faz feliz. A minha vontade sempre é de voltar para casa. Acho que quem não tem vontade de voltar para casa está perdido no mundo. Para mim, a casa é o lugar de acolhimento, de afeto, de amor, é o lugar em que você recebe os seus amigos ou não — mas você se recebe, se recicla, se alimenta. Dependendo da casa, dependendo de quem mora na casa. Eu saí de uma casa para vir morar num apartamento que foi transformado numa casa. Eu acho que a casa é você que faz, e faz de acordo com as suas necessidades. Para mim, [a casa] é conforto e alegria, tudo o que preciso na vida é ter minha casa. Eu amo viajar, agora, voltar para casa é uma coisa quente no coração.
Qual é o papel da arte na sua casa?
Na minha casa, são as minhas paredes. Arte para mim é parede. Em casa, é isso. Eu não quero, até já tentei pintar, mas não quero, já tem coisa demais. Na minha vida, é me deixar feliz
Que projeto você acha que ainda não realizou na sua vida?
Eu não escrevi um livro. De resto, plantei todas as árvores, fiz filho, cozinho, lavo e passo roupa, bordo, faço tudo.
Vai escrever?
Acho que sim. Falta conhecer muitos pedaços do mundo e escrever um livro. Não descarto a possibilidade.
Do que seria?
Eu acho que seria um livro de receitas mais amplas.
Em que sentido?
Receitas de cozinha mas que fosse, por exemplo, a receita de um jantar. Aí eu vou fazer a foto da mesa e vou aumentar essa receita para o tipo de papo, o tipo de pessoa que vem. Eu li uma vez um livro de uma mulher de um diplomata italiano, Ornella… Esqueci o nome dela. Perdi muitos livros na mudança, perdi caixas e caixas de livros, mas também não teria onde botar. Ornella Muti, quem sabe? Não, é uma atriz, uma cantora. Ornella não sei das quantas. Ornella Del-Sol, eu acho. [Orietta Del Sole]
Eu pesquiso depois, tento achar e te falo.
O nome do livro é Nunca treze à mesa. Ela fazia a receita do jantar e escrevia sobre os convidados, o papo que rolou na mesa. Então, eu acho que seria isso, com fotos — foto da mesa posta, foto das comidas, dando as receitas. Acho que o meu grande lance é realmente a parte de casa.
Seria quase um livro de atmosfera.
É, por aí. Uma coisa que eu pudesse misturar, com um quadro que teria apego àquilo, uma coisa assim, com algumas referências para ilustrar aquela receita. Mas tendo a receita também. Podendo dar dica de onde comprar, o que fazer aqui no cantinho, enfim, coisas assim, arranjo de flor que ficaria legal com aquela louça — porque minha mãe também é artista, teve o momento louças, eu tenho louça de milho, louça de…
O que você acha que significa essa frase, “passar para tomar um cafezinho” com alguém ou na casa de alguém?
Eu acho que é marcar um encontro, o que é sempre bom entre duas pessoas que se gostam, se admiram, se respeitam. Em casa eu acho sempre melhor, porque adoro receber. Dá preguiça, mas se é uma pessoa com quem você tem intimidade, ela chega, vai junto na cozinha, abre a geladeira… Aqui em casa, a pessoa é de casa, não tem essa de fazer cerimônia. Tenho amigos mais antigos também, então tem gente que vem aqui que já vai e já entra. A única coisa que eu mando tomar cuidado é com o degrau.