Brasa, série fotográfica de Gleeson Paulino, gentilmente cedida para a edição O Homem: Amarello 15 anos. Todos os direitos reservados.
#51O Homem: Amarello 15 anosCulturaLiteratura

Pré-Pós-Trans-humano: Zé Celso e Os sertões

Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, recebeu uma adaptação do Teatro Oficina entre 2002 e 2006, gerando um conjunto de cinco espetáculos, que se reporta às três partes que compõem o livro original (A terra, O homem e A luta). Na montagem, dirigida por José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, temos as peças A terra (2002), O homem 1 e O homem 2 (2003), A luta 1 (2005) e A luta 2 (2006), que viajaram pelo Brasil com a composição inteira a partir de 2007, inclusive para Canudos, fazendo os sertões circularem pelo país. Zé Celso encarnou Antônio Conselheiro, criando uma ópera–odisseia-carnavalesca e promovendo ressignificações desse personagem histórico, de Canudos e do conflito que ali se deu.

“Zé Celso descobre em Antônio Conselheiro e no povo de Canudos essa energia latente de transformação do ‘homem’, tomado enquanto metonímia da condição humana”

Euclides da Cunha foi associado ao Pré-Modernismo na literatura brasileira, termo hoje problematizado em função da centralidade que dá ao Modernismo, em vez de tomar o fenômeno literário em si, sem “linha evolutiva”. De todo modo, sabemos que o livro está relacionado ao contexto da Primeira República e a seu projeto excludente e violento de “modernização”. A esse processo contínuo de aniquilamento dos espaços, de pessoas e dos modos de vida e cultura dos povos que formaram o país, responderam uma série de revoltas populares. A resistência de um Brasil popular e negro-indígena-miscigenado ao processo de elitização e embranquecimento atravessa a história de Canudos e é a chave da leitura que Zé-Conselheiro vaticina.

O livro de Euclides da Cunha é um relato da viagem que o autor fez aos sertões da Bahia, em 1897, para acompanhar a “campanha de Canudos”, como correspondente do jornal Estado de São Paulo. O escritor, imbuído dos ideais naturalistas e positivistas de seu tempo, encontrou nessa experiência as contradições internas de uma jornada existencial a um Brasil que lhe era desconhecido. A nota preliminar do livro já situa essa incongruência, quando prevê o avanço da “civilização” pelos sertões e “o esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes”, mas constata que ali houve um crime a ser denunciado.

A frase que se tornou emblema da obra, “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, trabalha no fio das oposições entre sertão e litoral, mas também entre Hércules e Quasímodo, imagem paradoxal entre a força e o desvio. A citação, pertinente à parte O homem, vem no conjunto das análises sobre os processos de miscigenação no Brasil. O livro todo parece desconfiar do que afirma sobre as hierarquias raciais e culturais, diante da complexidade do sertanejo: “Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se”.

Zé Celso descobre em Antônio Conselheiro e no povo de Canudos essa energia latente de transformação do “homem”, tomado enquanto metonímia da condição humana. O “caboclo” revela-se aqui como ponto de cruzamento, e faz com que Zé Celso veja em Conselheiro um xamã, líder espiritual-político-filosófico que age no sentido da cura do ser e da terra. Deslocando as reverberações messiânicas e sebastianistas do líder em direção à centralidade de um presente marcado pela terra, pelo humano e pela luta constante, o espetáculo conjuga o futuro e o passado, e revela as possibilidades permanentes de mudança no agora.

Nesse sentido, abro um parênteses para falar de Roda viva, peça de autoria de Chico Buarque, de 1968, remontada em 2019. Na montagem do Oficina, surpreende a incorporação da canção homônima, de Chico, a princípio um lamento sobre o tempo e a violência da “roda viva”. No entanto, na encenação, os atores em giro, de parangolés coloridos, quase celebram a ação permanente do tempo, que a tudo leva-e-traz. No Youtube, temos um registro do espetáculo, em que a dança termina com uma criança da plateia que ganha a cena. Ela caminha saltitante de um lado para o outro e, no final, para espontaneamente no centro da roda, sorrindo e aplaudindo, revestindo a canção de sua força de promessa-realização.

Voltemos a Os sertões. Em A terra, Zé Celso aborda a relação entre o meio e o homem, e encena a célebre afirmação do livro de que o “o martírio do homem ali […] nasce do martírio secular da Terra…”. O espetáculo investe em construções antropomórficas, já presentes no original, para dar corpo à natureza. Segundo a descrição do Oficina, “os atores são terra, vegetação, vento, animais, rios, seca”, “revelando os segredos mais íntimos da natureza, que vibram também nas artérias humanas e trans-humanas.”. A contiguidade entre homem e natureza chama atenção, menos para o determinismo do que para a relação orgânica entre o humano e o natural.

Em uma das cenas, afirma-se que “o tempo não é linear; é um maravilhoso emaranhado em que a qualquer momento podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções sem começo nem fim”, oferecendo um horizonte de vitória. Canudos está por toda parte, em todos os tempos, presentifica-se no teatro. Aqui entramos no tempo circular, que Antonio Bispo dos Santos anuncia em sua conhecida formulação, “começo-meio-começo”, e que se encontra no expresso circular e no Tempo-rei de Gilberto Gil, na Refazenda, na Refavela, no Realce.

A segunda peça tem como título O homem 1: do pré-homem à re-volta. Aqui se encontram as premissas oswaldianas do passado alçado ao futuro, caminho para a modernidade brasileira. Destacando a formação da palavra “re-volta”, revela-se seu ideal de retorno às origens, adiante, fazendo coro à máxima de Ailton Krenak de que o futuro é ancestral. Não por acaso, a terceira peça tem por título O homem 2: da re-volta ao trans-homem. A escolha do prefixo “trans” reverbera o “super-homem” de Nietzsche, mas aponta mais para a transformação que para a grandeza, e menos para o masculino do que para o que o transcende.

Em uma cena icônica de O homem, gravada em Canudos, um coro de crianças sertanejas recitam e performam o longo fragmento que começa em “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, enquanto dançam e perambulam pelo palco-passarela. Em dado momento, imitam com seus corpos o “Hércules-Quasímodo”, em seguida ficam de cócoras sobre os calcanhares, e deles se levantam titânicas, enquanto reproduzem a linguagem sofisticada e complexa do livro: “da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”. As crianças devoram Euclides da Cunha, deslocam seu lugar de enunciação, forçam o texto a dizer além.

Chegamos, enfim, à luta, também dividida em duas partes. A história de Canudos se vê atravessada pela disputa de mais de quarenta anos do Teatro Oficina com o grupo Sílvio Santos, longo processo de conflito entre os planos expansionistas do empresário-artista, que comprou terrenos no entorno do Oficina e pretendia construir um complexo com shopping e centro de convenções, sufocando o teatro. Silvio Santos chegou a visitá-lo em 2004.

Zé Celso insistiu muitas vezes: “ele é um artista; vai me entender”. A verdade é que Silvio Santos é também personagem paradoxal, dono de um oligopólio de mídia e de empreendimentos comerciais, mas também criador de um universo de programas, músicas e personagens populares. Em todo processo, Zé Celso desempenhou o gesto tropicalista: tentou comer seu inimigo, incorporá-lo, exigir dele que se fizesse também o trans-Sílvio, cobrando que o artista se sobrepusesse ao investidor.

A primeira parte de A luta é dedicada aos primeiros episódios de resistência de Canudos contra as expedições violentas do exército republicano, inclusive a liderada pelo Coronel Moreira César, morto pelos resistentes. Mas refere-se também a Silvio Santos, e faz o terreiro eletrônico do Oficina, cercado pelos empreendimentos capitalistas, tornar-se uma terra a ser protegida e demarcada. Os consecutivos projetos de tombamento do teatro, primeiro em 1982, depois em 2010, foram ajudando a proteger o terreno e a belíssima construção de Lina Bo Bardi. Zé Celso, ameaçado pelas invasões, dobrou a aposta: liderou a imaginação de um teatro-estádio, e depois do Parque do Bixiga. Antônio-Celso multiplica-se nos elencos numerosos em disputa pela cidade.

Em A luta 2, temos uma peça dedicada a “todo poder de desmassacre da Arte e à atuação do Poder Trans-humano da Multidão”. Trata-se, na verdade, da sequência final do livro, em que o envio da expedição derradeira veio a vencer os sertanejos de Canudos e matar Antônio Conselheiro. No entanto, o espetáculo encena a luta sem aceitar o massacre, tampouco a derrota. Lembremos que um dos capítulos finais de Euclides afirma: “Canudos não se rendeu”. E essa é a grande façanha celebrada pelo Oficina-Canudos em pleno século XXI.

Aliás, é muito emblemático que a palavra “favela” tenha sido originada do nome do arbusto típico e de um morro em Canudos. A presença da planta no morro na Gamboa, atual Providência, concedeu-lhe o nome de Morro da Favela. Lembremos: as favelas cariocas surgem da mesma modernização excludente da República, que arrasou com os cortiços e fez suas populações subirem as encostas dos morros da cidade. E é também nas favelas que tantos sertanejos vieram morar ao longo do século XX, em subsequentes processos de migração.

Na literatura, os sertões também se refizeram nas canções de Luiz Gonzaga, nos cordéis populares e nas letras de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa. Em Grande sertão: veredas, Riobaldo termina sua fala constatando, sobre Deus e o Diabo, que “o que existe é o homem humano”. Rosa potencializa o termo “humano”, adjetivo de função restritiva, mas que, após o percurso da narrativa, parece atravessada por uma incontinência de sentidos, que transbordam. Na “travessia” que encerra o livro está pós-fixo o morfema “trans”, oculto e óbvio.

No dia em que Zé Celso se transmutou, no lugar de um velório tradicional, houve uma grande celebração a ele no Oficina. Em dado momento, Chico César começou a cantar os versos de Béradêro: “Catolé do Rocha / praça de guerra/ Catolé do Rocha / onde o homem bode berra”. As pessoas cantavam, batiam palmas e dançavam em torno do corpo (no final, tudo é sobre o corpo), pulando e pisando com força o chão do terreiro (desde o início, tudo é sobre a terra). Tudo é sobre luta, demarcação e re-existência. Canudos não se rendeu. Evoé!