Brasa, série fotográfica de Gleeson Paulino, gentilmente cedida para a edição O Homem: Amarello 15 anos. Todos os direitos reservados.

Letras dizem!
Nem necessitam as palavras inteiras, que formam ao juntar-se. 

Precisam de quem, atento, as compreenda, além de quem, escrevendo-as, facilite o seu entendimento. Assim formamos um trio. Eu escrevo, você lê e, entre nós, essas letras nos ligam num raro milagre: a minha expressão compreendida e a sua compreensão respeitada. Vejamos um exemplo, usando maiúsculas como ritos de significação. 

“Ser o ser” ou “ser o Ser”. 
Voltaremos a isso.

A rigor, ninguém deveria escrever para quem desconhece. O ideal seria conhecer, do leitor, a bagagem, e só então recortar, para ele exclusivo, como faz o alfaiate, o texto perfeito. 

No entanto, também se deseja — e é preciso —, escrever sem saber quem lerá. Para isso há um cuidado anterior, o de garantir uma bagagem mínima que permita a máxima compreensão. Dependendo do autor, essa escolha visita pequenos becos escuros, ou visita o universo, com seu imenso vazio e seu fascínio estelar. Daí dizerem que, quando um dedo aponta uma estrela, o sábio olha a estrela, o tolo olha o dedo. Palavras são dedos que apontam estrelas. Discutir as palavras é perder as estrelas. O ideal das palavras, esses riscos que soam, é serem inaudíveis, invisíveis, e só ficar, em quem lê, aquilo que dizem.

Escolhamos um tema: os Humanos! 

Eu poderia dizer “o Homem”, no universal sentido de humanidade. Faltaria “a Mulher” no sentido de humanidade… Mas a esta altura ainda estaríamos preocupados com os dedos, perdendo as estrelas. Pratiquemos, portanto, esse ato de caridade que é a compreensão: humanos! Falemos de humanos. 

Mulheres, homens, adultos, crianças, jovens, idosos, bebês… Palavras nos vãos, substantivando e adjetivando as categorias, existentes e novas, buscando o conjunto dos traços comuns: o humano no bicho, nesse bicho que é humano. 

Quem é? Como é? O que nos faz humanos? O que torna humanos esses corpos que falam, escrevem e leem? Que registram, e lembram, e riem, e choram enquanto criam e matam, ao redor e entre si. Sendo longa a viagem, é melhor revisar a bagagem. 

O que nos faz humanos? Esse tem sido um milenar tema de interesse. 
Segue inesgotado. Há uma razão: é inesgotável. E o é por uma singular característica: a linguagem. 

Ampliando, a linguagem capaz de cultura.
Ampliando, a cultura capaz de contrato.
Ampliando, o contrato capaz de construir confiança.

Surpreendendo, o contrato igualmente sujeito ao ardil traidor, utilizando a linguagem a favor de mentir. Mas há mais.

Outros, antigos, insistiram que o estigma, o carimbo indelével do humano é a razão. Outros, juntando, que é a razão integrada à linguagem. Outros, ousando, propondo uma carne dotada de alma na forma espantosa de uma alma encarnada… E outros duvidando, acrescendo, cortando, a ponto de estimular que, para maior compreensão, juntemos tudo, e faltará.

Os humanos são animais biológicos dotados de fala, que evoluíram adaptativamente a partir de ambientes e ancestrais conhecidos. Não! Ou não só! Os humanos são almas criadas por Deus encarnadas em corpos. Ou foram os corpos criados por Deus, que então soprou a alma? Pelo que se vê, como há de tudo, os humanos criaram palavras para descreverem a si mesmos. Não! Foram as palavras que criaram os humanos para falar através deles.

Bio… Psi… Biosociopsi… Bioanímicosociopsi… Bioanímicosociopsi nebular… E vai além.

Sob a visão que a si mesmo constrói, um humano resulta de: (i) uma carga genética; (ii) uma educação na infância; (iii) uma educação juvenil; (iv) um autodesenvolvimento na maturidade; e, para muitos, (v) uma alma, ou espírito, ou self, ou palavras que sejam que se queira adotar. 

É possível reduzir isso a: (i) genética (nature); (ii) educação (nurture);  e (iii) alma (esse terceiro fator).

Derivada dos poderes acima: a linguagem! Aqui compreendida no seu amplo sentido de “capacidade de contratar socialmente símbolos de representação”. Assim somos nós.

Agora, entregando a promessa das primeiras linhas, voltemos ao “Ser o ser” ou “ser o Ser”. Sejamos o Ser que somos, a tentar descobrir os seres que somos. 

Nossos céus, nosso lixo,
são repletos de anjos e bichos. 

Somos nós esses anjos e bichos. Integrando, cada um no seu só, os coletivos anônimos que adoramos, detestamos, mas que nos formam. A ambivalência é nossa aliada inimiga. Ela não é algo dentro de nós. A ambivalência é o que somos. Racionais paradoxos, pavorosamente incoerentes que, como criativos capazes de regredir como avanço, somos, ao mesmo tempo, produtores de desgraças e construtores de esperanças. Daí a questão “Ser o ser”. Comecemos por essa.

Ser, em maiúscula — algo de alma, portanto —, como um verbo ativo claramente disposto a ser, em minúscula, algo de bicho. Ou seja, desse “Alto”, esse Ser superior, desce ao corpo, experimenta os sentidos, cheira, olha, ouve, degusta, tateia. Experimenta as delícias e as dores, até os resquícios do gozo, fruindo e esgotando os amores.

É possível também “ser o Ser”. Esse bicho, menor, que olha acima e, por razões misteriosas — que nem são razões, são desejos —, ousa escalar. Ele escala! Em muitos sentidos, escala. Erótica, ética e esteticamente, ele escala e se torna mais desejável, mais justo, mais belo, até que escala politicamente, se fazendo mais poderoso, um fluente influente até, no limite, galgar a poética. Então, nesse cume, o ser que o galgou do sopé atinge o Ser. Aí se encontram! Ou seja, é no Ser, aí de cima, que esse ser, lá de baixo, é capaz de dar as mãos a si mesmo e propor a aventura a que se chama existência.

Qual seria? Que proposta, além dessas, tão óbvias e belas, poderia esse ser propor ao Ser, e vice-versa?

A proposta é bem clara: começar a “ser junto”.
Essa é a proposta que o humano do Humano faz ao seu Ser, via ser.
Conhecer!

Conhecer, primeiro, a si mesmo, é claramente impossível na ausência do Outro. Outrar-se, portanto. Outrar-se, em busca de si, na medida em que vaga pelos mares do Nós… Avancemos! Vejamos.

Humanos são bichos com almas capazes de voz,
na forma de sis solitários
que se conhecem em Outros, na busca de um Nós.

Delicados violentos, amorosos cruéis, ardilosos sagazes, perigosos, portanto. Humanos são esses seres estranhos que perguntam a si mesmos: “Quem são?”. É mesmo patético!

Aqui eu rio do rir do pensar… Como pode alguém, em sã consciência, perguntar a si mesmo quem é? Ou o que é? Ao invés de apenas ser, sem jamais perguntar nem querer se esconder. Justo aí o estranhamento se amplia. Os Humanos propõem oposições, sendo frequente se apaixonarem por extremos. Chamam dialética. É o maior absurdo que um surdo é capaz de escutar. Não sintetiza, divaga, contorce as palavras em dobras de cobras, cujos venenos sibilam nas bífidas línguas. Humanos, por vezes, são temíveis serpentes. Porém, ao mesmo tempo, concebem a dialógica. Então os rios de palavras fluem, uns acham os outros, os nós se desatam… E eles abraçam os nós, todos juntos.

Enfim, humanos são seres cujas palavras os tornam sociais, e chamam a isso contratos, frequentemente os celebram e respeitam, tanto quanto os falseiam e traem. Como usinas de afetos, humanos são produtores de raiva, de ciúme, de inveja, tudo embalado no medo, sempre em busca de amor.

Adoram o poder e se iludem ao pensar no amor ao poder como um dos poderes do amor. Amor e poder são opostos. No entanto, os humanos imaginam que, um dia, o amor e o poder estarão juntos.

Neste dia… A criar, a propor, a insistir…
A esperar para ver.
Neste dia…
Ser o Ser será o ser…
E nos lindos sons do serão
da existência, os humanos serão…