Brasa, série fotográfica de Gleeson Paulino, gentilmente cedida para a edição O Homem: Amarello 15 anos. Todos os direitos reservados.
#51O Homem: Amarello 15 anosSociedade

Todo brasileiro é verde e amarelo

“Sou bravo, sou forte/Sou filho do Norte”
— Gonçalves Dias (1823–1864)

O poeta maranhense Gonçalves Dias colocou as palavras transcritas acima na boca de um guerreiro tupi, em sua famosa obra I-Juca Pirama. Mas bem poderia ter sido na boca de um seguidor de Antônio Conselheiro durante a Guerra de Canudos, de um dos cerca de vinte mil sertanejos que surpreendentemente resistiram às investidas do exército nacional antes de serem mortos e de o povoado ser queimado. Esta guerra, ocorrida nos primeiros anos após a Proclamação da República, pode ser lida como um choque entre o Norte brasileiro, atrasado, rural, religioso, e um Sul que se via como urbano, moderno e cosmopolita e que não toleraria uma “ameaça” como a representada pelos “conselheiristas”.

“Que outros elementos influenciam no fortalecimento de uma identidade nacional? A seleção? As novelas da Globo? A música? Os atletas olímpicos?”

Esse conflito entre Norte e Sul (que grosso modo seriam as regiões Norte e Nordeste em oposição às regiões Sul e Sudeste) teve outros momentos de tensão ao longo da história do Brasil. E, infelizmente, alguns habitantes do Sul continuam achando que a solução mais fácil seria se livrar do pessoal lá de cima. Claro, não sugerem que haja uma guerra ou nada assim, mas toda vez que os resultados de uma eleição aparentemente mostram que as preferências políticas dos nortistas são muito diferentes das dos sulistas, surgem as mesmas vozes de sempre bradando dos seus altares virtuais: “Por que eles não se separam logo do Brasil?!”.

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Normalmente eu não tenho paciência para responder a esses questionamentos xenofóbicos, mas, em homenagem ao meu colega jornalista Euclides da Cunha, eu vou sugerir duas linhas de raciocínio (uma técnica e outra afetiva) para rebater meus interlocutores arianos. (A quem interessar possa, eu tenho um quarto de sangue nortista, de origem potiguar.)

Meu primeiro argumento é um contra-argumento: o Brasil não é os Estados Unidos. Apesar de, por motivos de mau jornalismo, vários sites insistirem, em toda apuração de eleição presidencial, na divisão do mapa brasileiro em estados vermelhos e estados azuis, nós não vivemos num país bipartidário e com colégio eleitoral. Nos EUA, pode até fazer sentido falar em “blue states” e “red states”, já que o partido que ganha em cada estado leva todos os votos daquela unidade federativa referentes à proporção definida pelo colégio eleitoral. Mas isso faz com que eleitores em estados onde a vitória de um dos partidos já é tida como certa sintam que nem vale a pena ir votar, ainda mais que o voto não é obrigatório por lá.

Aqui, cada voto é individual e conta para o resultado total de votos de cada candidato a presidente. Um voto de um eleitor no Rio de Janeiro tem o mesmo valor de um voto de um eleitor em Pernambuco. Lá, um voto de um eleitor na Califórnia ou no Texas, onde o vencedor já é previsível, “vale menos” do que o voto de um eleitor na Pensilvânia e nos outros chamados “swing states”, em que tanto os republicanos (vermelho) como os democratas (azul) têm chance de ganhar. Aqui não é assim! Por isso, não faz sentido pintar os estados de vermelho e azul. Esses mapinhas imitando os americanos só servem para fortalecer esse discurso xenofóbico de que “lá no Nordeste não sabem votar”. Não é à toa que, na última eleição presidencial, a Polícia Rodoviária Federal tentou prevenir que esses eleitores tentassem executar algo para o qual não estavam capacitados…

O fato é que, no Brasil, não importa quem ganhou em cada estado, e sim quem ganhou no total. Cada voto é único. Cada brasileiro conta, seja do Sul ou do Norte. Na eleição de 2022, Lula venceu Bolsonaro por pouco mais de dois milhões de votos. O que isso significa? Na Bahia, por exemplo, Lula ganhou com cerca de 70% dos votos. Se tivesse ganhado com menos de 60%, mesmo Lula tendo ganhado na Bahia, Bolsonaro teria sido eleito. A mesma análise vale para o Sul. Em Santa Catarina, Bolsonaro teve cerca de 70% dos votos. Se ele tivesse tido essa mesma proporção no Rio Grande do Sul e no Paraná, teria sido eleito.

Daqui tiramos duas conclusões. A primeira é que o sistema eleitoral brasileiro é muito mais democrático do que o americano. Aqui, cada voto será relevante em uma eleição, não importa o estado em que você more. Em 2022, um eleitor do Lula em Santa Catarina tinha tanta importância quanto um eleitor do Lula em Pernambuco. Da mesma forma, um eleitor do Bolsonaro em São Paulo tinha tanto valor quanto um eleitor do Bolsonaro na Paraíba. A segunda conclusão deriva dessa: não podemos considerar os estados onde o Lula ganhou como sendo “vermelhos” e os estados onde o Bolsonaro ganhou como “azuis” (inclusive porque, se um americano vir esse mapa, não vai entender nada, dado que lá o partido republicano é que é o vermelho). Em cada estado, ainda que 70%, em casos extremos, possam optar por um dos candidatos, ainda existem 30% que preferem a outra alternativa! E, dentro dos estados, cada município também segue a mesma lógica. E em um estado pode haver grande diferença entre municípios. Em 2022, por exemplo, Bolsonaro ganhou na maioria dos municípios do estado de São Paulo, mas Lula ganhou na maioria dos municípios da região metropolitana da capital. E dentro dos municípios, a lógica continua, se compararmos diferentes bairros…

Não faz sentido querer dividir o país em cores distintas! Nós, brasileiros, não somos vermelhos ou azuis, nós somos todos verdes e amarelos.

Vamos fazer um teste de brasilidade. Você se emociona ao ouvir aquele poema que começa assim?

Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Se você se emocionou, você com certeza é brasileiro! Aí que entra minha segunda linha de raciocínio — mais afetiva — para responder ao pessoal que indaga por que o Norte/Nordeste não se separa do Brasil. Simplesmente porque, sem eles, não existe Brasil. Você deve ter aprendido na quinta série que a estrofe acima é a primeira do poema Canção do exílio, de Gonçalves Dias — sim, o mesmo poeta romântico maranhense com o qual comecei o texto. O que talvez nem todos saibam é que um trecho desse mesmo poema é citado, entre aspas!, no hino nacional brasileiro.

“‘Nossos bosques têm mais vida’,
‘Nossa vida’ no teu seio ‘mais amores.’”

Ou seja, dois elementos tão importantes para a identidade brasileira, a Canção do exílio” e um trecho belíssimo do nosso hino, não existiriam sem nosso querido bardo nortista. E, em um país com poucas guerras no currículo, sendo que a de Canudos foi uma das últimas (e, ainda que sangrenta, foi breve e localizada), que outros elementos influenciam no fortalecimento de uma identidade nacional? A seleção? As novelas da Globo? A música? Os atletas olímpicos?

O que seria da Seleção de futebol sem Zagallo, Bebeto ou Rivaldo? Sem falar na rainha Marta! O que seriam das novelas marcantes para a cultura nacional sem Dias Gomes, José Wilker, Aguinaldo Silva? O que seria da grande família brasileira sem Marco Nanini? Do nosso humor popular sem Chico Anysio e Didi Mocó? Da nossa música sem João Gilberto, Caetano, Gil? Da nossa esperança olímpica sem Ítalo Ferreira, Isaquias Queiroz, Rayssa Leal?

Por caminhos tortuosos e muitas vezes violentos, nos tornamos esse Brasil que está aí. Para o bem e para o mal, somos 215 milhões de brasileiros que escutam cantar o Sabiá. Alguns lugares sofrem com secas, outros com enchentes. Agora não dá mais para se separar. Ainda dá tempo de se ajudar. Temos que aprender a conviver com nossas diferenças — e valorizar o que temos em comum. A começar pelo verde e amarelo.