Family, de Masahisa Fukase. Cortesia de Image Masahisa Fukase Archives e MACK.
Sociedade

Filhos na crise climática: escolha moral ou salto de fé?

Em tempos de incerteza, ter filhos se torna um dilema. O que antes era uma decisão esperada, hoje se torna uma questão: qual futuro quero ajudar a construir?

A ideia de ter filhos sempre foi envolta em uma aura de continuidade, como se a procriação fosse um elo entre o passado e o futuro. Ainda que a perenidade não seja o fator número um para se tomar a decisão, nela sempre haverá um quê de esperança, uma fé, acima de tudo, na permanência. Mas, ultimamente, essa ideia foi colocada em cheque. A cada ano que passa, a crise climática e as turbulências geopolíticas batem à nossa porta com mais força. Assim, o ter ou não ter filhos, questão que antes era pessoal e subjetiva, agora ganha contornos coletivos e filosóficos: é justificável colocar uma nova vida neste mundo?

Foto de Ramin Talebi | Unsplash.

Ondas de calor recordes, enchentes cada vez mais frequentes, escassez de água, desertificação de terras antes férteis, o aumento do nível do mar e, bem, a lista infelizmente continua. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) não deixa dúvidas de que o futuro será marcado por eventos climáticos extremos, perda de biodiversidade e crises econômicas e sociais. Em suma, estamos no limite do irreversível, naquele ponto em que ou fazemos vista grossa ou chegamos à conclusão de que aspectos que consideramos indeléveis talvez não sejam tão indeléveis assim. O conceito de “posteridade”, tal como o conhecemos, já não parece tão concreto — e, por consequência, o que entendemos como continuidade da espécie, e do nosso sangue, também se dissolve.

Para que a população de um país se mantenha estável, é necessário que cada mulher tenha, em média, 2,1 filhos. Em 2021, apenas 46% das nações apresentavam uma taxa de fecundidade acima desse nível, com a maioria concentrada na África Subsaariana. Em escala global, o número médio de filhos por mulher era de 4,84 em 1950, diminuindo para 2,23 em 2021. Estimativas indicam que esse índice continuará caindo, chegando a 1,83 em 2050 e 1,59 em 2100, o que levará à redução das populações.

Muito embora os números de fecundidade estejam em declínio por inúmeras razões, há quem veja na procriação um ato de esperança, um voto de confiança na capacidade humana de resistir e se reinventar. Outras pessoas, porém, a enxergam como um peso adicional em um planeta já exaurido. É como se o desejo de perpetuação se chocasse com a consciência de um futuro incerto.

Foto de Alexander Dummer | Unsplash.

“Foi segurando meu filho nos braços que eu entendi a mistura de esperança e desespero que é ter uma criança. ‘Que mundo vai receber esse ser humaninho hoje?’.

Vitor Lima, professor de filosofia de 35 anos responsável por criar a escola e o canal de Youtube, Isto Não é Filosofia (INÉF), acredita que “há algo paradoxal em ter filhos.” E, sendo o pai de um menino, explica: “De um lado, há o receio — será que o planeta aguenta? Será que não estamos ampliando sofrimento em vez de criar esperança? De outro, basta olhar o sorriso banguela, ou perceber os olhos atentos do moleque que descobre uma formiga no quintal, para entender que existem renovações diárias do futuro. A vida, apesar do peso de todas as coisas, ainda pulsa.”

Continua: “Como eu sou professor de Filosofia, o meu campo me ajudou a enxergar as ambiguidades do mundo. Mas foi segurando meu filho nos braços que eu entendi a mistura de esperança e desespero que é ter uma criança. A cada manhã, ele se torna outra pessoa, e cada centímetro novo vem com a pergunta: ‘Que mundo vai receber esse ser humaninho hoje?’. Se não fosse a possibilidade de mudar algo — nem que seja uma pequena marola num oceano revolto — talvez a gente desistisse. Mas há no gesto de ter um filho uma semente teimosa de futuro, da mesma forma que cada livro, cada invenção ou cada abraço que oferecemos.”

Um ponto importante presente na fala de Vitor é que a crise climática não apenas levanta dúvidas sobre ter ou não filhos, mas também ressignifica a experiência da paternidade e da maternidade para quem opta por ela. Com recursos finitos, a criação consciente se torna essencial. Isto é, ensinar crianças a viver com menos desperdício, a cultivar empatia e a se engajar em causas sociopolíticas é praticamente inerente ao papel de procriador. Muitas pessoas, inclusive, dispostas a criar agentes de mudança para o futuro, optam por formatos alternativos de parentalidade, como a adoção ou o apoio a crianças de comunidades vulneráveis, entendendo que cuidar de uma vida não precisa, necessariamente, significar gerar uma nova.

Há, no entanto, quem opte pelo antinatalismo, fundamentando sua decisão de não ter filhos em princípios éticos. Gilmara Alves de Oliveira, 46 anos, compartilha como sua especialização em Serviço Social e sua atuação com remoção de famílias em áreas de risco, especialmente mulheres em situações de vulnerabilidade extrema, a fizeram refletir sobre o futuro das próximas gerações.

“Já adulta”, conta, “mesmo tendo relacionamentos estáveis, nunca me senti pronta para formar uma família. Adoro crianças, mas nunca me vi gerando uma. Acho que minha formação profissional me levou a ver a realidade nua e crua do mundo. Trabalhei com questões climáticas e vi o quanto o planeta vai colapsar com a falta de recursos naturais, então só penso: ‘não tem condições de deixar uma criança num mundo assim’. Além do fato de eu ter pavor de engravidar e ter uma menina num mundo machista, com toda a violência que cerca o gênero feminino.”

Mas Vitor, que vê beleza na paternidade, também tem a ética em mente: “A discussão sobre ética e natalidade, no fundo, é um lembrete da nossa fragilidade coletiva, e isso não precisa soar como sentença sem apelação. Quando o caso parece perdido, uma maneira de recuperá-lo é fazer mais e não menos perguntas. Por que não transformar nosso medo em cuidado? Por que não usar a angústia como motor de mudança? Se o mundo está incerto, então talvez devêssemos nutrir o que há de certo: a curiosidade infantil, o desejo de crescer junto, o amor que só nasce e se desenvolve com a convivência — não com elucubrações filosóficas.”

São respostas viáveis para o mesmo dilema. Vitor, ciente das dificuldades do mundo, decidiu se tornar pai e busca transformar seus medos em ação, com a responsabilidade paternal servindo como um motor no caminho da mudança; Gilmara, por sua vez, ao não querer alimentar uma chama que já consome o futuro, opta pela decisão de não contribuir para um ciclo que parece insustentável e de não impor a um novo ser humano o sofrimento que dita o mundo. Em ambos os casos, silêncio e indiferença deixaram de ser opções. As respostas fáceis — “tenho porque sim”, “não tenho porque não tenho” — já não se sustentam.

Refletindo sobre o peso de sua decisão, Gilmara lembra que a pressão familiar existia, já que tem “duas irmãs que casaram e tiveram filhos.” Mas, em determinado momento, sentiu que sua vida tomava um rumo que não queria: seu “namorado na época queria ser pai”, o que culminou num momento muito difícil na relação, porque ela “não queria filhos e nem queria casar.” Sempre teve outras prioridades, “queria antes viver outras coisas, morar fora, fazer uma pós-graduação.” A maternidade nunca foi um desejo seu, não à toa ela afirma, categórica, que “era angustiante pensar em filhos.” Hoje, sente-se segura com sua decisão, dando “suporte para as mulheres da minha família e amigas” e sendo feliz cumprindo o papel de tia.

O relato de Gilmara destaca alguns pontos cruciais do debate: além das preocupações com o estado atual do mundo, que não se limitam apenas ao meio ambiente mas também abrangem questões sociais, surge a questão do equilíbrio entre a vida profissional e a maternidade. No passado, quando a prioridade era ter filhos, qualquer carreira ficava em segundo plano. Atualmente, no entanto, uma mudança de mentalidade está em curso, ampliando gradualmente as oportunidades no mercado de trabalho para as mulheres. Essa transformação, que também se insere no âmbito individual, leva muitas a buscar ativamente essas oportunidades, colocando sua vida profissional como uma prioridade. 

Mas, como estamos acostumados, é a população feminina que mais carrega o peso da escolha pela não-maternidade.

“São muitas as questões que envolvem esse julgamento pela não-maternidade”.

Mesmo com o mundo no estado preocupante em que está, a escolha de não ter filhos ainda pode ser mal vista — e isso, claro, vale em dobro para as mulheres. Andreza Nunes, autora do livro Eu escolho não ser mãe, que reúne narrativas de mulheres que decidiram não virar mães, conta que seu livro “surgiu da minha escolha de vida e também da vontade de desmistificar a ideia de que as mulheres são egoístas ao fazerem essa escolha e, claro, quebrar as críticas que sofremos. Busquei mulheres de diferentes faixas etárias e estados civis para que contassem suas histórias também e pudessem mostrar os seus motivos.”

No processo de pesquisa e escrita, percebeu que “o tema da não-maternidade ainda é um tabu. Existem mais pessoas que escolheram esse caminho do que a gente pensa, mas muitas delas, para evitar burburinho, críticas e conselhos não solicitados, se calam.” A própria Andreza, que tem 30 anos e escolheu não ter filhos, sente esse preconceito. “São muitas as questões que envolvem esse julgamento pela não-maternidade”, conta ela. “As religiões que abominam; uma parte da classe médica que não ajuda e não segue leis, como o caso de mulheres que fazem ou querem fazer laqueadura sem filhos ou até com filhos; o preconceito da sociedade que acredita que as mulheres só vieram ao mundo para serem mães e também acredita que uma família só é família se o casal tiver filhos. É uma discussão profunda e que, infelizmente, não é só nós escolhermos, mas há uma luta grande para que sejamos respeitadas.”

A romantização tanto da maternidade quanto da paternidade pode acabar com discussões positivas para as pessoas que estão nesse momento de discussão. O dilema entre ter ou não filhos em tempos de incerteza se desdobra em camadas que vão além, perpassando a idealização de ser pai e de ser mãe. O que antes era uma decisão quase natural, muitas vezes socialmente esperada, hoje se torna um campo de reflexão profunda, em que cada pessoa precisa se perguntar: qual futuro quero ajudar a construir? E qual papel quero — ou não quero — desempenhar nele?

Vitor mesmo admite que as respostas variam conforme a mentalidade de cada um, não há certo ou errado: “Só sei que, quando envolvo o Ulisses [seu filho] nos braços, as minhas dúvidas perdem valor. Ele dorme, mas eu permaneço atento ao nosso presente compartilhado. E nesse presente, posso escolher entre duas vias: cruzar os braços perante o caos ou abrir espaço para a vida, mesmo sabendo que ela também traz caos, mas um caos fértil de possibilidades.

Ser pai me fez ver que a ética de ter filhos não é só teoria — é prática cotidiana. É o cuidado em cada escolha e a consciência de que cada ser humano novo traz também um novo jeito de olhar o mundo. E, quem sabe, de consertá-lo um pouquinho.”

Talvez seja um duelo entre esperança e desesperança, entre o anseio de quebrar com o passado e o impulso de se ligar a um futuro incerto. Difícil dar um nome a isso. Mais difícil ainda é apontar um vencedor, pois, no fim, o mundo permanece o mesmo para todos. E esse mundo, sim, depois de séculos de mau-uso, parece estar perdendo.

Se as escolhas forem de fato genuínas, e não imposições, elas refletirão ponderações profundas, respostas pessoais aos estímulos coletivos. Andreza, Gilmara e Vitor são bons exemplos disso, vivendo em paz com suas decisões. Trazer ou não uma nova vida ao mundo deve ser, mais do que nunca, uma decisão tomada com plena consciência. O futuro cabe a nós escolher.