
Se existe uma religião, a minha é a música: Hermeto Pascoal em O Menino d’Olho d’Água
Entre tosses que viram percussão, copos d’água que se tornam instrumento e a sinfonia dos animais do sertão, o documentário O Menino d’Olho d’Água se propõe a muito mais do que contar a história de Hermeto Pascoal. Isso já valeria muito a pena de ser assistido, considerando que a história em si é ótima, mas a obra dirigida por Carolina Sá e Lírio Ferreira entende que isso o limitaria, e faz mais pela figura que retrata ao não tentar decifrar o “bruxo” passo a passo, nem enquadrá-lo em escolas ou movimentos. Prefere o caminho mais sincero, aquele que o próprio Hermeto indicaria: no lugar de explicar, sentir.

Distanciando-se do formato convencional de biografias audiovisuais — em especial as musicais, em que o período pré-fama ganha destaque por revelar o primeiro contato com a música, reverberando a mensagem “dali adiante, tudo mudou”, e com os anos de sucesso sendo reduzidos ao impacto cultural muitas vezes subjetivo —, o filme parte da liberdade criativa que sempre guiou o multi-instrumentista alagoano para construir uma narrativa igualmente livre, fragmentada em três tempos: o presente performático de Hermeto, seu passado em Olho d’Água Grande, no interior de Alagoas, e os bastidores atemporais do processo criativo. É um todo fascinante que cabe na simplicidade e grandiloquência de uma de suas frases: “a música sou eu, eu sou a música.”
O Menino d’Olho d’Água, disponível no Canal Curta!, não deixa de se agachar por sobre as origens de uma musicalidade intuitiva e radical. Mas dá a essa origem um ar quase etéreo. O filme começa com Hermeto tocando flauta dentro de um lago e esse gesto sintetiza o espírito do que veremos dali adiante — com toda a ênfase no “espírito.” A água deixa de ser apenas elemento cênico para tornar-se som, corpo e partitura. E tudo que o cerca, da boiada ao ronco noturno, é matéria-prima musical. O que circunda Hermeto vira sonância e, por isso, ele e sua música se confundem com o mundo. O mundo toca Hermeto, e Hermeto devolve em música. É uma relação íntima que emociona.
Ao costurar imagens de arquivo, apresentações recentes e depoimentos íntimos, o documentário revela mais pelas margens do que pelo centro. Quem se permitir flutuar pelas nascentes de por onde corre a música de Hermeto, encontrará um filme que ecoa sua própria lógica: nada aqui é linear, tudo é pulsação.
Nascido em 1936, Hermeto cresceu afastado das atividades agrícolas da família por conta do albinismo. Em vez da típica vida na roça, então, ele se pôs a descobrir e a fazer amizade com os sons do mato: o coaxar dos sapos, os assobios dos passarinhos, a sinfonia viva das matas de Alagoas. Ali se formou o ouvido que transformaria tudo em música. “Meu professor foi o universo”, diz ele. Assim, o mundo era sua escola, seu cotidiano, seu caderno de música levado a tiracolo.
Mas, em casa, o ambiente também era musical. O pai e o irmão tocavam acordeão; a mãe era cantora de coral. Esse incentivo decerto foi importante. Mas é no modo como ele transgride convenções, e ouve música onde os outros escutam apenas ruído, que sua grandeza se revela. Ao longo de sua trajetória — que inclui parcerias com ninguém mais ninguém menos que Miles Davis e uma carreira solo marcada por inovação —, Hermeto nunca se curvou a padrões. Sua música é selvagem, espontânea, profundamente brasileira e, ao mesmo tempo, universal. Ela parece vir de uma camada pouco explorada por outros artistas, algo vindo de um lugar mais elementar.
Aos 88 anos, Hermeto segue ativo. Em 2024, lançou Pra Você, Ilza, álbum dedicado à sua companheira de quase cinco décadas. Com ele, ganhou o Grammy Latino de Melhor Álbum de Jazz. É um trabalho que reafirma que, mesmo após décadas de invenção, Hermeto continua compondo como quando andava de ônibus nos anos 1970, repetindo as melodias que surgiam em sua cabeça para não perdê-las antes de chegar ao destino.
O Menino d’Olho d’Água não é sobre a história do músico, é sobre sua natureza. É sobre um artista que nunca separou som de vida, música de corpo, técnica de intuição. É um filme que, como ele, prefere o risco à fórmula. E que nos lembra que certos mistérios não foram feitos para serem explicados, mas ouvidos.