
Têxteis do Brasil: a arte de bordar o tempo com as mãos
Livro da pesquisadora Helena Kussik é um registro sensível dos variados saberes têxteis que marcam a identidade do Brasil.
No Sítio Mimoso, em Jataúba, Agreste Pernambucano, duas meninas se escondem debaixo de um pé de árvore. Com folhas de caruá, papel de açúcar e agulhas “roubadas” da mãe, decidem ali mesmo “aprender o renascenço”. O improviso não é brincadeira, é o prenúncio de uma habilidade que se tornará profissão, memória e identidade. Uma delas, Maria Aparecida de Oliveira, a “Bium”, hoje é referência na Renda Renascença, e essa cena, que poderia muito bem ter sido tirada de um conto, é uma das muitas narrativas que o livro Têxteis do Brasil – Rendas e Bordados, organizado por Helena Kussik, reúne com generosidade e escuta atenta.

E Helena aqui não é apenas uma pesquisadora. Neste projeto, é também uma testemunha sensível do que se aprende com o gesto, com o silêncio entre as palavras, com o tempo do bordado. O livro é fruto de uma jornada de mais de 10 mil quilômetros pelo Nordeste brasileiro, no qual o chão seco e o céu azul das paisagens agrestes guardam memórias tão profundas quanto os pontos de uma renda labiríntica. Realizada com apoio da Artesol, a publicação responde à urgência de reconhecer e preservar técnicas têxteis que, apesar de sua riqueza, permanecem pouco visíveis e muitas vezes subestimadas.

Em cada capítulo, há o percurso de técnicas como a Renda Renascença, Singeleza, Labirinto, Boa Noite, Redendê, Bilro, entre outras. Técnicas que parecem falar de ornamento e delicadeza, mas que são, na verdade, ferramentas de sobrevivência e resistência. No conjunto desses capítulos, forma-se uma travessia afetiva, estética e política por catorze núcleos produtivos do Nordeste brasileiro, onde se bordam saberes ancestrais em formas que desafiam o tempo cronológico. “O tempo dos pontos, para mim, é o tempo da criação”, escreve Helena em sua introdução. E é nesse tempo espiralar que o livro se constrói: entre as linhas que cruzam o passado, o presente e o que ainda está por vir.
“A maioria inconteste dessas artesanias são criadas por mulheres de classes populares vivendo em áreas rurais”, aponta a pesquisadora Bianca Barbosa Chizzolini no prólogo, ressaltando como os bordados, ainda que originados no espaço doméstico, não se limitam à esfera privada. Muito pelo contrário, são caminhos para a emancipação. Uma artesã entrevistada por ela, por exemplo, conta que, por meio da venda de suas peças, conseguiu retomar os estudos. Outra entrevistada conta que viu o mar pela primeira vez em uma viagem a uma feira de artesanato. Essas histórias mostram que o bordado é também uma geografia de expansão. É nesse contexto que o “saber-fazer” deixa de ser apenas técnica e se afirma como identidade, política e poesia.

O livro respeita a lógica dos afetos tanto quanto a das técnicas. O foco está onde precisa estar, rendando a fazedura com a existência. Embora tenha nascido de uma extensa viagem de pesquisa, a obra não se organiza segundo um roteiro geográfico tradicional. Adota uma metodologia que dialoga com a ressalva feita desde o início aos mapas convencionais. Como lembra o antropólogo britânico Tim Ingold, citado no prefácio, os mapas traçam linhas para delimitar, mas não conseguem registrar “a identidade substantiva das pessoas e dos bens”. Para isso, é necessário outro tipo de cartografia, aquela que se desenha nos gestos cotidianos, nos risos partilhados em varandas, na tensão silenciosa da linha no lacê. É essa geografia sensível que o livro se propõe a registrar, e é aí que ele mais comove.


A técnica, aqui, não está separada da vida. “É você saber mesmo fazer a Renascença, para saber onde dá pra tecer o dois amarrado, o richiliê, a traça, o que é possível. Tem coisa que é impossível, que é só na imaginação”, diz Maria Laudecir, uma das riscadeiras entrevistadas. Os nomes dos pontos, que vão de “mosca” a “sianinha”, carregam histórias e regionalismos que seriam apagados por qualquer tentativa de padronização industrial.
Há também uma dimensão física e sensorial na produção têxtil que o livro faz questão de valorizar. As fotografias de Nathália Abdalla revelam a concentração no rosto das artesãs, o traço da idade nas mãos, a dança silenciosa dos dedos. Já as ilustrações de Camila do Rosário transformam pontos como “pipoca”, “amor seguro” e “dois amarrado” em registros visuais claros e expressivos. Têxteis do Brasil – Rendas e Bordados acaba sendo uma espécie de chamamento, um canto que convoca o reencontro com o fazer, com a escuta, com o reconhecimento. E faz isso sem cair no risco da folclorização, denunciando o apagamento histórico desses saberes e apontando caminhos possíveis para sua continuidade. Destaca, inclusive, o papel de políticas públicas, de projetos como o Crença (Centro de Referência da Renda Renascença) e das redes de comercialização direta.

Como um tecido que vai se estendendo, o livro deixa fios soltos para que sejam retomados. Não é um ponto final, mas uma laçada, um gesto de continuidade. Em tempos de algoritmos e aceleração, ele nos lembra que existe valor no tempo do detalhe, na pausa, no feito à mão. E que bordar, como viver, pode ser um ato de atenção radical. Porque, como dizem muitas das mestras, muitas vezes o aprendizado vem “de olhar”. E, se olharmos com atenção, veremos que cada renda é uma carta aberta do Brasil para si mesmo.
Helena Kussik encerra sua introdução com um desejo: “Que essa potência não fique restrita às lembranças de uma infância na casa da avó, nem seja deixada para um futuro distante, como a aposentadoria.”
Que o têxtil seja agora.
