
Amarello Visita: Tuju e Ivan Ralston
Fotos de Derek Fernandes
Em um fim de tarde agradável, o chef Ivan Ralston recebeu o editor convidado desta edição, o sociólogo Carlos Dória, para uma conversa livre e ampla — como deveria ser toda boa conversa — dedicada à alimentação. Inicialmente formado em música, foi no restaurante da família que Ralston viu despertar o interesse e o talento para o mundo dos sabores. Após trocar um sentido por outro, graduou-se na Escuela Hosteleria Hofmann e acumulou experiência em restaurantes renomados, como El Celler de Can Roca e Mugaritz, ambos na Espanha, e RyuGin, no Japão, antes de abrir o seu Tuju. Reconhecido pelo público e por seus pares como um dos principais nomes da cozinha no Brasil, foi com a mesma qualidade e verve criativa com a qual concebe seus pratos que o chef tratou de temas como gastronomia, ética, ingredientes, Brasil e, claro, os acertos e erros que somente o amor à comida pode proporcionar.
A primeira questão que eu queria colocar é a seguinte: conheci o seu pai logo que ele veio do exílio e começou a operar uma lanchonete no Conjunto Nacional. Também fui colega do seu tio, Eduardo. Cheguei a ir uma vez à fazenda Terra Roxa, onde ele tem o negócio de goiabada. Você sempre respirou esse ambiente culinário? E como é que você descobriu que tinha um cozinheiro dentro de si?
Ivan — Sempre respirei isso, com certeza. Talvez a primeira imagem mais marcante seja a abertura do [restaurante] Ráscal, em 1994, quando eu tinha nove anos. Nesse dia, lembro de queimar os crèmes brûlées. Eles me deram um maçarico, “fica queimando aí”, e eu fiquei me divertindo. Então sempre estive no universo dos restaurantes. Agora, meu sonho não era ser cozinheiro, mas ser músico. No colégio, era apaixonado por jazz, queria ser o Jaco Pastorius, o baixista. Mas não tinha aptidão. Até estudei numa escola de música nos Estados Unidos. Eu era um músico bem medíocre, não me destacava em nada. Nos Estados Unidos, você consegue fazer três semestres por ano, então terminei a faculdade com vinte anos. Quando voltei, fiquei alguns meses na casa dos meus pais, e meu pai, aquele pai judeu bravo, falou: “Você não vai trabalhar, cara, vai ficar aí tocando baixo o dia inteiro? Olha, semana que vem você começa no restaurante”. Lembro que, primeiro, eu fui trabalhar no Ráscal, com a Nádia, que até hoje está lá. Foi uma experiência muito legal, mas chegou uma hora que meu pai entendeu que eu precisaria trabalhar em um restaurante que não fosse da família para poder me desenvolver. E, na época, o Maní era um restaurante icônico na cena gastronômica de São Paulo. Foi uma experiência incrível, passei dois anos trabalhando lá. Só que eu nunca tinha feito faculdade de gastronomia, e a Helena [Rizzo] sugeriu “Ivan, deixa eu te dar uma dica, vai estudar nessa escola em Barcelona que, quando eu fui fazer estágio lá, era onde eu queria ter estudado”.
Qual escola?
Na Escuela de Hostelería Hofmann. Por influência da Helena, acabei indo lá fazer faculdade e depois fiquei mais um tempo trabalhando. Foi isso, acho que o cozinheiro talvez estivesse dentro de mim por tudo que eu vivi, mas nem valorizava tanto.
Interessante. Você fez essa trajetória, e, hoje, que tipo de gastronomia acha que faz?
A gente abriu o restaurante [Tuju] em 2014. Eu era aquele tipo de cozinheiro que se formava fora do país e chegava com um nível técnico razoável, não excelente, longe disso, mas razoável, e queria mostrar tudo que tinha aprendido. Acho que, num primeiro momento, a culinária que eu fazia era muito inspirada em coisas de fora. Pegava algo que havia aprendido no exterior e decidia que iria usar a jabuticaba no lugar. Essa era a minha cozinha, em que a brasilidade se encaixava através dessas possibilidades, talvez até uma cozinha superficial, porque era pouco flexível e muito parecida com o que se via lá fora, apenas com variações de ingredientes locais. Hoje, acho que o que eu faço é cozinha de mercado. E comida boa.
De mercado no sentido que o Paul Bocuse coloca?
Não, eu realmente vou três vezes por semana comprar peixes, frutos do mar e grande parte das verduras que a gente usa no cardápio. Eu vou bastante na Liberdade, numa peixaria chamada Fenglin, vou em algumas lojas de verduras de lá, que eu gosto bastante, vou nas feiras da Mourato. Enfim, eu frequento os mercados, vou passeando atrás de produtos, todo dia. Construo o menu a partir disso. Claro, como estou bem mais maduro, depois de dez anos, a comida é mais gostosa também.


Aproveitando que comentou, você acha que há essa demanda para os chefes de abrasileirar o que aprendem lá fora? Quer dizer, essa coisa de aterrissar na brasilidade? Eu pergunto porque isso está no livro Cozinheiro nacional.
Ivan — Sim, se você parar para pensar, a demanda por comida italiana em São Paulo é muito maior do que a demanda por comida brasileira, concorda?
Claro.
Os restaurantes italianos, no geral, estão bem mais cheios. Agora, eu também acho que tem algumas áreas do conhecimento humano que o Brasil se destaca culturalmente, num nível de excelência alto. Acho que a culinária ainda não é uma delas. O Brasil se destaca, por exemplo, na música. Você não acha que temos um repertório, uma estética muito própria? Acho que o Brasil se destaca também na arquitetura, por exemplo. Temos uma arquitetura entre as três melhores do mundo nos últimos oitenta anos. Você vê uma cidade como Brasília, que foi projetada do zero. O Tuju é uma tentativa de elevar a gastronomia ao que essas outras humanidades já conseguiram. Uma tentativa; não disse que é uma execução, é uma tentativa.
Você não acha que é tarde demais? Me explico: tem uma tese [Os chefs e suas criações] do Maurício Piatti Lages que é bastante madura sociologicamente. Ela demonstra de maneira bem convincente que os chefes hoje se formam num fluxo internacional, internacionalizados desde sempre. Quer dizer, o chefe não é daqui nem de lá, ele não tem nação, num certo sentido. Há uma universalização do discurso gastronômico. Você não se sente um cozinheiro do mundo, mais do que um cozinheiro brasileiro?
Eu sinceramente não me sinto um cozinheiro brasileiro, eu sou uma pessoa zero patriota. Essa coisa de Brasil nunca me pegou. Inclusive, apesar de eu ser uma pessoa de centro-esquerda, não de esquerda, eu acho que essa coisa de orgulho nacional é uma grande distração para a classe trabalhadora não olhar o que ela realmente devia olhar, que é ter uma vida boa. Acho que muita gente acaba se perdendo nisso. Então, respondendo, eu me sinto talvez muito mais paulistano do que do mundo, e muito mais paulistano do que brasileiro.
Mas do ponto de vista técnico, por exemplo, é difícil você estabelecer essa fronteira.
É difícil, mas tem casos de pessoas que… Por exemplo, hoje eu aprendi muito a respeitar cozinheiros sem formação, porque eles às vezes tem um olhar fresco para as coisas. Então você pega, por exemplo, o Michel Bras. Hoje a cozinha dele está mais conhecida, muita gente copia, mas, na época em que ele surge com aquilo, com uma cozinha tão vegetal, só alguém com a cabeça vazia poderia ir por esse caminho. Alguém que está tentando agradar críticos e guias jamais seguiria essa ideia.
Nesse sentido, é mais espontâneo, você acha?
Mais espontâneo. A espontaneidade é muito importante também.
Eu não conheço bem a biografia dele, mas ele é um cara que, quando desponta, já tem uma carga técnica.
Ele é um cara sem escola. Ainda mais na França, onde tudo é profissionalizado, isso é muito raro. Normalmente você entra com quatorze anos numa escola técnica para virar chefe, aí eles vestem você com aquela gola com a bandeira da França. A França tem um projeto nacional de comida. O Brasil não tem isso. E ele é um outsider desse projeto, é um cara que não sai daí. Em teoria, quando você tem um projeto desses, é esperado que a maior parte do talento do país venha dessa proposta. Então essa espontaneidade, essa capacidade do ser humano de criar coisas novas, foi algo relevante. Não sei agora, com a inteligência artificial, o que vai acontecer. Mas sempre surge alguma coisa diferente.

Vamos voltar pro Brasil. Se você pegar, digamos, até os anos 70, há um esforço muito grande de alinhamento com a nacionalidade, claro. E não apenas na gastronomia, também se pode ver na arquitetura, na música. Eu acho que essa dimensão nacionalista da cultura é incontornável. Depois, nos anos 70, aí voltando pra gastronomia com a nouvelle cuisine, você tem o relaxamento dessa exigência nacionalista, e acho que é nesse contexto que o Michel Bras consegue vicejar. Eu fiquei muito impressionado quando, nos anos 40, descobri o Paulo Duarte desenvolvendo um pensamento gastronômico que não existia antes. Nem Mário de Andrade tinha desenvolvido. E, dos 40 em diante, vemos uma separação entre o viés nacionalista e o viés internacionalista. Você teve também uma separação muito grande, que eu chamaria entre os ingredientistas — aqueles que veem no ingrediente uma materialização dessa ideia nacional —, que defendem que, afinal de contas, o cupuaçu é nosso, ninguém tira; e também os tecnicistas.
Engraçado que essa primeira ideia que você falou, sobre “o cupuaçu é nosso, ninguém tira”, nas minhas viagens, eu tenho visto que é muito delicada, porque, de repente, você vai para o Peru e o cupuaçu também é deles. Ou você vai para a Venezuela e eles têm um prato muito parecido com a feijoada. Então isso aí é muito relativo.
Sim, é relativo, mas hoje tem um aparato público que se apropria disso. O próprio Estado passa a fazer o elogio dessas características, promover os ingredientes, as matérias-primas nacionais como ingredientes de uma culinária nacional. Isso é algo inevitável. Eu não gosto, mas é inevitável. A gente sabe que a Amazônia é de vários países. A formiga não está só no Brasil, não é?
O pirarucu também não.
O pirarucu também não. Fazer desses componentes da flora e da fauna algo nacional, imbuído de nacionalidade, é um projeto ideológico muito claro…
E raso, vamos combinar. Fazendo uma comparação com a arquitetura, por exemplo, com o brutalismo, a cultura moderna brasileira conseguiu desenvolver uma linguagem própria, a ponto de você olhar e identificar qual arquiteto projetou determinada obra. Eu concordo com você, os ingredientes não são suficientes para definir uma nação culinariamente.
O tucupi é muito mais.
E o tucupi também, porque agora, por exemplo, os peruanos também estavam falando que tem tucupi lá, uma vez que os povos indígenas também estão lá. O que torna, eu acho, justamente algo mais profundo. Imagina se a gastronomia japonesa falasse que o produto deles é a soja. Não é a soja, é o shoyu, é o que eles conseguem fazer com a soja. Então o tucupi é um exemplo de um produto que eu acho que tem essa força de puxar a gastronomia brasileira, porque ele não é um ingrediente natural, ele é uma ideia de como tratar esse ingrediente.
Um trabalho humano.
Um trabalho humano. O tucupi tem essa força. Agora, teria que ter mais tucupi.
*
“o Brasil é mais pobre que a Argentina. É mais pobre que o Uruguai, acho que é mais pobre que o Peru, não tenho certeza. É mais pobre que a Colômbia, que o Chile. Somos os mais pobres da América do Sul.”
*

Se a gente pegar pela vertente da técnica, claro, fazer o tucupi é uma técnica elaborada. A mesma coisa na farinha de mandioca e várias outras coisas. Sem contar aqueles produtos naturais que não são naturais, mas são culturais, arqueologicamente. Porque tem muita coisa que é domesticada por povos indígenas há milênios. Existe essa coisa da técnica que a gente não presta atenção. Não há um livro de técnicas brasileiras. Pode ter vários livros de técnicas francesas, até de outros países, japonesas, mas não existem técnicas brasileiras.
Vamos fazer uma reflexão. Qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça quando falamos em técnicas brasileiras? Me cite três.
Moquém, tucupi, farinha de mandioca.
Paramos aí. Você falou três técnicas que, vamos dizer assim, são oriundas dos povos indígenas, correto?
Que já existiam quando os portugueses chegaram.
Você já parou pra pensar qual era o PIB per capita do Brasil antes da chegada dos portugueses?
Não existia PIB.
É, não existia PIB, mas, se você fosse calcular, devia ser altíssimo, não concorda? Tinha pouca gente num ambiente riquíssimo, com muito recurso natural, sem pobreza. Então, para desenvolver técnica, você precisa desse tipo de ambiente. É que, no nosso mundo ocidental, a gente ainda vê a riqueza somente como a riqueza capitalista, mas eu acho que existia um ambiente de riqueza no Brasil antes da chegada dos portugueses. E hoje o Brasil é um país muito pobre. O brasileiro fica zoando a Argentina, mas o Brasil é mais pobre que a Argentina. É mais pobre que o Uruguai, acho que é mais pobre que o Peru, não tenho certeza. É mais pobre que a Colômbia, que o Chile. Somos os mais pobres da América do Sul. Enquanto não resolver a questão social, eu não vejo no Brasil um ambiente propício para você ter um desenvolvimento de técnica. Onde isso está acontecendo? Está acontecendo nos países ricos, na Espanha, na França, nos Estados Unidos, no Japão, na Alemanha, na China. É isso, essa é a realidade. Aqui no Brasil os restaurantes vivem com a corda no pescoço. Enquanto a gente não tiver um crescimento econômico exponencial importante isso não vai acontecer no Brasil.
Recentemente você se envolveu num projeto de pesquisa dentro do Tuju, um centro de pesquisas voltado a democratizar os estudos que fundamentam a prática gastronômica. O que você espera dessa atividade? Olha, me corrija se eu estiver errado, mas eu vejo nas ações dessa proposta, em um primeiro momento, apenas a finalidade de alimentar o Tuju, e não uma dimensão pública, digamos assim.
A primeira obrigação é alimentar o Tuju, sem dúvida. Não vou ser hipócrita, os primeiros trabalhos que foram feitos nesse centro de pesquisa foram para catalogar a sazonalidade dos alimentos, que era algo para ser muito simples, mas não existia antes.
Algo parecido com o que fez o Virgilio [Martínez, chef peruano]?
Não, o que o Virgilio fez no Peru tem outros critérios. A gente quer saber algo mais básico, saber que época do ano tem jabuticaba. Isso não tinha sido catalogado. Então é uma coisa muito simples, mas que nunca foi feita. E o objetivo disso é que a gente soubesse no Tuju qual hora a gente deveria usar cada produto. A gente não sabia.
Quer dizer, ele visa suprimir a ignorância do Tuju.
Totalmente. Hoje a gente sabe muito mais do que sabíamos há três anos. Longe de saber tudo, claro, mas sabemos que devemos usar manga em determinada época do ano, por exemplo. Sabemos que a sazonalidade da lula está no mar, então deve ser usada em tal época do ano, quando conseguimos ela pescada na costa, na água quente, que é o ambiente propício para a lula se reproduzir. Assim ela chega mais fresca. A gente sabe que tem olho-de-boi, por exemplo, pelas correntes marinhas, também nessa época do ano. Até tem o ano inteiro, mas é nessa época que ele está gordo. Estudamos muito a parte do mar, das frutas e verduras. Hoje temos um bom conhecimento de em qual época devemos trabalhar com cada produto. Num primeiro momento, o projeto foi esse. Agora, nesse segundo momento, existe uma missão de tornar esse conhecimento mais público, fazendo com que o restaurante preste um serviço para a sociedade. Às vezes, quem olha de fora tem uma imagem extremamente superficial e elitista do nosso restaurante. Mas um restaurante como o nosso trabalha com pequenos agricultores, ajuda a formar em torno de trinta cozinheiros por ano, que passam por aqui no programa de estágio. Honestamente, a empresa é lucrativa, e acho isso essencial, pois recolhemos bastante imposto, e isso ajuda o país. Vamos ver o que vai sair disso. A ideia é oferecer cursos que não sejam caros, que as pessoas possam entrar no universo do Tuju. Elas podem não ter R$1.100,00 para pagar num jantar, realmente poucas pessoas têm, mas quero que, de alguma maneira, elas possam desfrutar e aproveitar esse ambiente de uma outra forma.
A pesquisa, você me disse, é um primeiro mapeamento de sazonalidade. Talvez de ecologia, correntes marinhas. Mas eu lembro de um jantar aqui que tinha de boi curraleiro até navajas, que você descobriu no Rio Grande do Sul. Essa diversidade, como ela é? Planejada, empírica ou você tem um propósito, por exemplo, de descobrir, além do curraleiro, outras carnes nacionais?
Depende. Algumas descobertas caem no meu colo, porque aparece alguém e me diz, “estou fazendo isso aqui”. Outras, eu realmente encontro, como as navajas. Hoje, o nosso principal fornecedor, aquele com que gasto mais dinheiro, é uma peixaria de chineses na Liberdade. Você sabe que São Paulo, o Brasil, teve uma migração chinesa muito grande nos últimos dez anos. Esse pessoal está chegando com uma mentalidade moderna, porque a China é um país muito desenvolvido atualmente. Então eles querem tudo vivo, com qualidade excelente, que eram condições que me faltavam dos produtos do mar. Esse pessoal consegue me suprir disso. Olha a importância da imigração e olha o momento que a gente está vivendo, em que você vê o presidente dos Estados Unidos expulsando os imigrantes. Eu tenho certeza de que ele é um símbolo da decadência americana. Porque a imigração, na verdade, traz diversidade, riqueza, trocas. E que bom que o Brasil ainda é um país que aceita imigrantes e promove encontros, essa troca positiva. E, por fim, algumas descobertas são apresentadas por colegas, como, por exemplo, o curraleiro, que chegou pelo Rafa Bocaina. O Rafa é um cara que se interessa muito pelo universo das carnes. Ele falou “Ivan, encontrei uma carne”, e a história por trás é muito interessante. Foi, realmente, a primeira raça de vaca que se estabilizou no território nacional. Eu não vou comprar somente porque a história é boa, claro. Antes de tudo, tem que ter qualidade. Então tem vários jeitos de descobrir as coisas, você tem que estar antenado, de ouvido aberto e atento.


A gente poderia falar, se fosse na música, de harmonia. Mas quando o assunto são os sabores, como é que você vê essa questão hoje? Eu tenho em mente, por exemplo, aquela sua entrada de caviar iraniano com curau. Você acha que é uma coisa da gastronomia brasileira moderna? O que te moveu a aproximar os dois sabores?
Primeira coisa: quando resolvi reabrir esse restaurante com a Katherine [Cordás, sócia-diretora do Tuju], uma das coisas que eu falei que não tinha feito e que queria fazer era trabalhar milho e mandioca. Porque, engraçado, apesar do milho ser a cultura principal no Brasil, junto com a mandioca, a gente não se apropria tanto disso no discurso como outros países, como México e Peru, por exemplo. A ideia de juntar vem do meu gosto por provocar. É um curau com um pouco de gelatina, sem o caviar. Talvez as pessoas achassem aquilo ali vulgar, que não poderia estar num restaurante desse nível. E a minha provocação é essa.
Lá atrás, há pelo menos vinte anos, o [Alex] Atala me falou algo semelhante, “se eu não puser foie gras…”
Não, mas não é no sentido de que se eu não puser foie gras as pessoas vão reclamar. A minha visão é outra: se eu colocar, então é que elas vão dar valor para o milho. E vou te falar, mais de uma vez cheguei a ouvir de clientes “Muito bom esse prato. O milho é melhor que o caviar”.
Gente pretensiosa [risos]. Mas o que o Atala apontava, acho que com razão, é que você tem uma pequena burguesia que frequenta os nossos restaurantes que demanda a presença desse valor agregado nos pratos. Esse valor é o foie gras, é o caviar, alimentos e ingredientes que, no universo de valores dessas pessoas, faz sentido e contamina, digamos assim, a experiência.
Nesse sentido, eu me inspirei muito na arquitetura brasileira, porque um dos desafios, como eu disse, era criar um senso estético único. E acho que o Tuju tem conseguido. Isso tem a ver com o êxito que o restaurante tem tido. Uma regra que eu coloquei aqui é: algo só vai entrar no prato se tiver uma utilidade, seja ela gustativa ou em termos de textura, para melhorar esse prato. Você está falando e tem toda razão. A pequena burguesia, vamos chamar assim, ela quer o show, ela quer o nitrogênio, ela quer as flores, ela quer uma estética que já existe fora do Brasil. O que eu quero é justamente o contrário. Eu quero apenas o que é preciso para aquele prato. Às vezes, escutamos elogios que eu não gosto. “Nossa, foi muito bom, nem parece que estou no Brasil”. É bem desagradável, mas as pessoas falam achando que a gente vai achar legal. Na verdade — e eu não falo isso no sentido nacionalista —, as pessoas que fazem esse país são capazes de produzir coisas incríveis.
Você acha que esse nível de consciência de trabalho, em restaurantes como o seu e outros dessa categoria, como o da Helena Rizzo, o do Alex Atala, etc., vão ter algum impacto na alimentação popular? Impacto estético.
Com certeza. Eu acho que o impacto vem não apenas dos restaurantes, mas também do mercado de luxo. Isso é comprovado, impacta o mercado mais popular, seja em moda, em arte, em gastronomia.
Em gastronomia, fale alguma coisa que lhe ocorre, além do dadinho do Mocotó.
Foi a primeira coisa que eu pensei, eu já estava com o dadinho em mente. Posso dizer várias, mas quero um exemplo provocativo. Veja o sushi, ele surge como algo caríssimo, para poucas pessoas. A partir disso, se desenvolve no Brasil, goste ou não, um estilo próprio e popular de fazer sushi, que vai com cream cheese, goiabada, seja o que for, mas que é uma expressão do que antes era somente para os ricos.
Está no buffet das churrascarias.
Está no posto de gasolina.
O temaki é uma invenção brasileira.
Do jeito que fazemos, ele se torna brasileiro. Assim como esses sushis são brasileiros. Às vezes, as pessoas mais ricas debocham, sem perceber que é uma expressão popular, como a lambada. É o resultado de como o brasileiro entendeu determinada comida e criou a partir dela.
Você tem a perspectiva de criar algo que tenha esse lugar na alimentação?
Olha, sabe que, com quarenta anos e dois filhos para criar, as minhas ambições são bem mais modestas. Eu só quero que o restaurante seja rentável, que esteja cheio, que as pessoas que trabalham aqui estejam felizes. É evidente que produzir algo único ajuda nesse sentido. Agora, quem tem que falar se a gente faz algo único ou não são os clientes.

Claro. Você sente, da parte do público, alguma estima diferenciada por algo em particular?
Curioso perguntar, porque sinto que — lembra que você comeu e adorou a panacota de milho com caviar? —, temos tido sucesso com o prato de milho com caranguejo. É uma espécie de molho, uma sopa de milho com caranguejo. E, no menu anterior a esse, tinha lagostim com pamonha.
Milho de novo.
Milho de novo. A gente tem tido êxito em conseguir demonstrar que é possível fazer com milho uma comida legal, sofisticada, leve e saborosa.
E que é bem paulistana. Se você estivesse no Nordeste, provavelmente a mandioca falaria mais de perto. Interessante.
E esses pratos foram considerados pelos clientes o melhor de cada um dos menus.
Queria voltar e comentar o caso das navajas. Tudo bem, você encontrou no Rio Grande do Sul, mas elas me fazem pensar imediatamente no turu.
O que é turu, desculpe?
É um marisco.
Já sei, aquele que dá no tronco.
Exatamente, ele é parente da ostra.
Tem na Amazônia, não é?
Isso. Quando é a hora de ir atrás do turu? Ou essa é uma tarefa do Thiago Castanho?
Eu acho que é uma tarefa dele, que está na Amazônia. Na minha cozinha, 90% do que eu uso é comida de mercado paulistano. Eu não faço uma comida que me exige viajar pelo Brasil inteiro para procurar ingredientes endêmicos. Não, eu faço uma comida com produtos do agricultor que tem um sítio em Mogi, de outro que pesca peixe em Ubatuba, na Ilhabela. É uma proposta muito mais modesta. O Brasil tem esse desafio de ser um país continental, e, por isso, é difícil alguém realizar o trabalho como o que o Virgilio fez, de pegar cada região do Peru e botar isso no menu, porque o Brasil é maior do que a Europa. Então é impossível, a gente vai precisar repartir, ninguém vai poder ser dono da gastronomia brasileira. Não deveria ser assim, e não é.
Pois então, você cai num dos temas do Modernismo. O Mário de Andrade procurou expressar uma culinária nacional. Assim como o Câmara Cascudo, ele tinha um pensamento antirregional muito forte, eram muito militantes dessa visão, ao contrário do Gilberto Freyre. Você acha que o cenário futuro vai ser assim, de uma gastronomia nacional diferente, ou vai ser uma federação de gastronomias regionais?
Uma federação de gastronomias regionais, porque o Brasil é muito grande. Não regionais no sentido à paulista, em que a gente sabe que a comida do interior de São Paulo se torna igual à de Minas. Regional nas expressões, sem fronteiras ali.
Regional de verdade, regiões culinárias.
A tendência, na minha opinião, é nos tornarmos diferentes inclusive linguisticamente. Daqui a duzentos anos, devemos estar falando línguas quase diferentes entre Norte e Sul. O Brasil de hoje não tem esse projeto nacional, e acho isso bom, porque justamente dá lugar a mais diversidade, a mais expressões.
*
“Eu não tive essa cultura, não sei dizer se o tucupi está bom ou ruim”
*
Você acha que a perspectiva de uma culinária afro-brasileira é muito mais se individualizar e se expressar autonomamente do que se integrar nacionalmente?
Acho que sim, acho que a integração nacional é uma mentira. De verdade. Sobre esse assunto, quem você acha que tem que fazer uma culinária afro-brasileira, eu ou um chefe preto de Salvador?
Eu acho que os pretos estão fazendo em todo lugar.
Exatamente.
Eu acho que a matriz disso está no Manoel Querino. Inicialmente ele que procura dar uma expressão fidedigna do regional fora da Bahia, criar um cânone para a cozinha baiana que possa se universalizar. O Jorge Amado mete todas as receitas nos livros dele. As nacionaliza, num certo sentido.
Sim. Veremos muito mais complexidade nos projetos se as pessoas pararem de querer ser algo e passarem a ser o que elas realmente são. Eu admito isso: quando cheguei, eu queria usar tucupi, queria usar esses ingredientes, até que um dia pensei “eu não tive essa cultura, não sei dizer se o tucupi está bom ou ruim”. Então essa não é essa culinária que eu tenho que fazer. Se alguém sabe, ótimo, vai lá e faz, mas eu não sei, então não vou fazer.
Mas é isso, Ivan, existe uma força difícil de nomear que diz o seguinte: você tem a tarefa de implantar um bom tucupi.
Acho que os jornalistas gostam muito disso, é uma categoria que acredita muito nesse projeto nacional.
Porque eles vivem num país imaginário.
Eles estão totalmente errados, essa é a realidade. Jornalista não gosta de ouvir que está errado, é uma das categorias mais mimadas do mundo.
É, eles esperam que você fale o que estão dispostos a ouvir.
O que estão dispostos e o que querem ouvir, é isso.
Sim, mas tem poucos segmentos da sociedade, da vida cultural, capazes de vocalizar criticamente essas questões, inclusive a respeito da nacionalidade. Sem dúvida, quando você diz que o Peru tem isso, tem aquilo, hoje está havendo um recorte que é transnacional, e não nacional. É algo universal. Se pegar produtos como mate, por exemplo…
Eu acho que o projeto gastronômico do Peru, como muita coisa no mundo, é uma bobagem feita para americanos. É como as pessoas que vão para a Disney, naquele Epcot Center. Meus pais nunca me levaram, mas eu vou levar meu filho esse ano, porque ele está viciado em Star Wars. E, no fundo, acho que também estou a fim de ver com os meus próprios olhos toda aquela encenação estética da paisagem no prato. Aquilo é algo feito para norte-americano, que, para conectar o cliente com a natureza através da comida, coloca musgo embaixo do prato. No fim, você ainda coloca um chocolatinho para o cliente pegar.
Mas isso está lá no começo da nouvelle cuisine, não?
Isso é tudo publicidade, porque comida é tão direta quanto a arquitetura, no sentido de que a boa arquitetura é aquela que produz bons espaços para as pessoas viverem e interagirem, e a boa comida é aquela que provoca sensações interessantes. Inclusive, não vou considerar que é o que dá “prazer”, porque não acho que comida boa tem que ser somente o que é saboroso, gostoso, mas, sim, aquilo que provoca, que faz a pessoa se sentir melhor depois de comer.
Você se sente à vontade para falar um pouco dos seus colegas chefes de destaque? Helena, Alex, etc.
Sim. A Helena Rizzo é uma pessoa brilhante. O certo seria ela falar de mim, porque eu que fui o aprendiz dela, mas já que é o contrário, acho ela uma pessoa com um dom artístico, uma sensibilidade estética muito apurada. Por vezes, até foi mal-entendida, porque o público, no Brasil e no mundo, está em sua fase mais infantil — a mais infantil de todos os tempos. As redes sociais, essas sim, deixaram todo mundo muito burro. Você fica o dia inteiro consumindo conteúdo de quinta categoria e, depois, qual será a sua capacidade cognitiva para julgar o trabalho de uma pessoa tão sofisticada quanto a Helena?
E o Alex?
Vejo ele como o primeiro chefe brasileiro a ter um restaurante de fine dining num formato mais… Tivemos outros antes, mas eram franceses que usavam produtos brasileiros. Ele foi o primeiro brasileiro. É um cara que ama a Amazônia, gosta de viajar para lá, que tem uma conexão com o lugar, e acho ser a pessoa capaz de fazer um pouco dessa culinária também em São Paulo. E, claro, os estrangeiros têm muita mais curiosidade numa culinária amazônica do que num restaurante de cozinha de mercado em São Paulo. O Alex me falou que no Dom, se não me engano, 60% do público é estrangeiro. No Tuju, esse número não chega a 10%.
E o Rodrigo Oliveira, do Mocotó?
Rodrigo é muito bom cozinheiro, e caso raro. No Brasil, são poucas as pessoas que conseguem progredir financeiramente. Eu conheço poucas, uma delas é meu pai. Meu pai é uma pessoa que nasceu pobre e enriqueceu. O Rodrigo é outra pessoa assim. Eu acho que sempre que tem alguém que consegue furar a bolha no Brasil, a gente precisa bater muita palma, porque é bem difícil.
Qual é o papel cultural que você enxerga na cozinha dele?
Ele faz uma culinária que define como sertaneja. Eu não sou um grande conhecedor desse tipo de culinária, mas sei que gosto de comer lá quando vou. Sei que ele criou, talvez, o prato mais copiado da culinária brasileira no mundo, que é o dadinho de tapioca. Cheguei a ver Albert Adrià fazer dadinho de tapioca. Lembra que eu te mandei uma foto disso? Então ele é um cara fantástico.
Tem algo interessante na linguagem dele, porque, seguramente, a maior comunidade paulistana é nordestina. Aí ele pega essa culinária e põe para um público burguês lá no fim do mundo. Eu lembro que a primeira vez que eu fui lá, com a Nina Horta, ela falou “eu te pego na sua casa”. Daí chega ela com uma van, ela alugou uma van para irmos. “Nina, por que você não falou? A gente pegava um taxi”, eu disse. “Não, eu não sei voltar de lá, então aluguei uma van”. Então era uma excursão, literalmente uma excursão com a saudosa Nina.
Isso é lindo. Ele, durante muito tempo — e acho que até hoje, mas em menor medida, até porque abriu um Mocotó aqui na Zona Oeste também —, fez as pessoas saírem da Zona Oeste, da Zona Sul, dos bairros mais nobres e irem até a Vila dos Medeiros. Isso é fantástico. Aliás, dizem que a definição do Guia Michelin dos restaurantes de três estrelas, não sei se você já viu, mas eles falam dos restaurantes que valem a viagem.
Porque tem que viajar.
O Mocotó era um três estrelas desses, porque as pessoas viajavam para ir comer no Mocotó e voltar.
Interessante. Você pega — na Europa isso é muito comum — os bons restaurantes fora da grande malha urbana. No Brasil, não funciona muito.
É, teve o Mocotó, que não está na Zona Central; teve o Restaurante Cepa, que hoje está em Pinheiros, mas surgiu no Tatuapé. Você tem projetos que deram certo nesse sentido. A própria Casa do Porco — é bizarro falar isso —, mas é porque o centro de São Paulo não é hoje o centro econômico de São Paulo, ele virou um lugar……
Virou uma representação do centro, alegoria central.
É, as pessoas saíam daqui para ir até lá para comer na Casa do Porco. Tem projetos, de tempos em tempos, que conseguem se destacar nesse sentido.