
Pode a pessoa negra ser feliz? Um ensaio com e contra a psicanálise
Satisfação: primeiras palavras com a psicanálise e contra a psicanálise
É preciso dizer que a maioria dos escritos em psicanálise se referem ao que poderíamos chamar, de modo geral, de sofrimento. É possível subverter a noção de neurose, ligada inicialmente à hegemonia do discurso psiquiátrico, e projetá-la, como assim o fez Freud, no âmbito de desordens psicológicas para melhor mapear as raízes do sofrimento. A palavra “felicidade”, na psicanálise em geral, é rara. A palavra “satisfação”, sobre a qual irei vagar nestas linhas, aparece mais do que a palavra “felicidade” em textos de psicanálise. A satisfação está ligada, contudo, às pulsões e aos desejos com conotações mais ou menos sexuais, pelo menos numa perspectiva freudiana. A satisfação, em algum sentido, pode ser entendida na sua articulação com o destino de uma pulsão.
Para Freud, o trabalho psicanalítico “nos lega a tese de que as pessoas adoecem neuroticamente devido à frustração. Referimo-nos à frustração da satisfação dos desejos libidinais”. A satisfação está no contexto de uma gramática conceitual em que impera a lei do desejo, mas o desejo aqui é tomado no amplo espectro capaz de atravessar os mais diversos corpos por estar incrustado numa espécie de condição humana. Temos então um duplo problema: a universalidade da construção freudiana e a própria redução da satisfação à esfera libidinal. Isto é, trata-se de uma construção conceitual que se coloca numa condição de neutralidade cultural e, portanto, capaz de falar da satisfação de todas as experiências humanas e, ao mesmo tempo, de uma compreensão da satisfação que condiciona a frustração a uma dimensão de “desejos libidinais”.
Se começo esta conversa com a psicanálise é porque o presente texto parte dela, mas sem a pretensão de se encerrar num determinado dos seus paradigmas. Por isso, é preciso, por um lado, demolir a universalidade das definições de satisfação no campo psicanalítico de matiz freudiano e, por outro, compreender como ela se inscreve na corporeidade negra como uma possível expressão da felicidade. Nesse sentido, se a cultura europeia é marcada pelo sofrimento ou tem no sofrimento um dos seus principais temas, no que diz respeito à negritude, o que está em jogo é o sofrimento que a mesma cultura europeia lhe impingiu e uma possível contraofensiva pelo recurso à noção de felicidade. A minha hipótese é de que a nossa satisfação como corporeidade negra passa pela implosão das máscaras brancas — responsáveis, entre outras coisas, por nos firmar no sofrimento racial — e pelo reconhecimento de que a nossa satisfação está no exercício da felicidade.
É importante sublinhar que, para o caminho deste meu ensaio, a presença de Frantz Fanon é uma das estações pelas quais somos obrigados a passar. Afinal, é com ele que as questões raciais da psicanálise conhecem um dos seus primeiros tensionamentos. A sua obra Pele negra, máscaras brancas é essa estação obrigatória. A máscara branca é a expressão que o editor da obra usa para se referir ao que Fanon inicialmente chamou de “ensaio da desalienação do homem negro”. Longe de expressar uma contradição com o autor, o trabalho de edição do texto torna possível o diálogo com título que Fanon originalmente havia pensado e que são os dois vetores centrais do processo de racialização. A construção da raça é a imposição do modelo de branquitude como padrão universal (a máscara branca), e, nessa imposição, ela aliena a pessoa negra de si mesma. Em certo sentido, a psicanálise, quando assume uma pretensão de universalidade, inscrita naquilo que chamo de fantasia da neutralidade cultural, é um mecanismo ideológico de subordinação da humanidade ao padrão da branquitude. Essa subordinação forçada implica a alienação da pessoa negra da condição de humanidade por ela não se reconhecer numa corporeidade que jamais pode ser a sua.
O ponto é que os dramas clássicos da psicanálise, ancorados no núcleo de uma família burguesa numa branca Viena dos séculos XIX e XX, e que constituem, segundo Freud, seus pilares — como, por exemplo, o complexo de Édipo—, não necessariamente tocam as subjetividades negras nas variáveis que lhe seriam supostamente constitutivas. Ou seja, só podemos seguir os nossos passos na insistência e na esperança de que caminhamos ainda com a psicanálise quando rompemos com um entendimento abstrato de satisfação e começamos a dotar de corpo negro aquilo que pode ser a satisfação. Afinal, o corpo negro em diáspora e em África não guarda as mesmas relações familiares e culturais das pessoas que frequentavam os divãs de Freud.
Quero pensar a satisfação na sua articulação com a felicidade. No território que sou, foi a experiência racial que me forjou antes mesmo da triangulação edípica. Nossas famílias são marcadas pela ausência de pais (seja a ausência na presença de pais alcoolistas, seja na ausência de quem partiu sem dizer adeus), por mães e avós violentadas e por um mundo que nos achata ontologicamente na forma de um ser deficitário, cuja falta de humanidade só é proporcional ao excesso de humanidade branca.
Nesse território que somos, a satisfação não é propriamente aquilo que está na ordem de uma iminente frustração de desejos libidinais. A nossa satisfação é interditada por razões humanas, mas de uma humanidade específica. A humanidade que inventou as raças para nos dividir. A humanidade europeia. Desse modo, a satisfação que procuramos é anterior ao que é central na psicanálise freudiana.
Satisfação: o exercício da felicidade
Inicio dizendo que, para as pessoas negras, a satisfação material está indissociada de uma dimensão psíquica. A privação do predicado humano foi e ainda é acompanhada por uma falta de natureza material. Por não serem consideradas humanas, as pessoas negras, ao longo das suas histórias, sempre estiveram acostumadas com os restos. Sobras. A comida era uma necessidade primeira, e a insegurança alimentar é um traço comum em várias vidas negras. É o que nos conta Conceição Evaristo em O sagrado pão dos filhos de Evaristo. A mãe deixa de amamentar os filhos para resguardar o leite para o filho de uma pessoa branca. Ou seja, a própria relação com o seio da mãe é marcada por uma falta que não é diretamente ligada a uma dificuldade da mãe de amamentar, mas por um direcionamento racial da prioridade alimentar e do próprio conforto da amamentação.
Se seguirmos o raciocínio de Melanie Klein sobre a dualidade do seio materno (seio bom, seio ruim), por meio da qual a criança pode atingir a posição depressiva e continuar o seu amadurecimento psíquico, que inclui a capacidade de lidar com a própria ambivalência, é notável que a privação do seio materno produz outras fantasias nas crianças negras, cujo recorte racial é incontornável. Isto é, uma necessidade material, a de amamentar os filhos dos patrões, tem ressonância no próprio processo de subjetivação das pessoas negras no modo, por exemplo, como elas lidam com o complexo e ambivalente ato de amamentação. Assim, não é possível dissociar questões materiais da própria vinculação da mãe com o bebê e com como ele consegue integrar na mesma pessoa duas dimensões primárias nas fantasias infantis.
É nessa perspectiva que a mesa farta não é apenas uma mesa farta de uma casa burguesa, onde cabe às pessoas negras os restos, como lemos novamente em Evaristo. A fartura para as pessoas negras, que se estende nas oferendas para os orixás, é, em certo sentido, uma satisfação das pulsões vitais com ressonância na própria compreensão da humanidade de si mesma. Ela tem o efeito psíquico, pouco explorado na psicanálise, que consiste na imposição da articulação da corporeidade com a satisfação para além das condições orgânicas. Isto é, a partilha que o alimento promove, quando liberto das condições subumanas que marcaram e ainda marcam a história da corporeidade negra, é o exercício da satisfação por meio do qual se enreda a própria experiência amorosa.
Se a psicanálise contribuiu muito para retirar o corpo das condições estritamente biológicas, a compreensão do sexo para além da reprodução, a sabedoria do povo negro aponta que a satisfação alimentar é um ato de liberdade e de construção de uma comunidade. Nessa perspectiva, a satisfação deixa a esfera de um indivíduo, que tem que se haver com as suas frustrações de natureza libidinal, para compor uma experiência comunitária que envolve também orixás e seres encantados. Essa ampliação da experiência da satisfação tem implicações sobre aquilo que as pessoas negras perseguem e que poderia servir de novo caminho para a psicanálise, a saber, a felicidade.
O exercício da felicidade, portanto, ocupa um lugar central naquilo que as pessoas negras ensejam para si mesmas como realização do desejo. Tendo a pensar que essa experiência comunitária da negritude não reconhece na sociedade um conjunto de pessoas em busca apenas de uma satisfação de caráter sexual e individual, como parece sugerir alguns textos de Freud. O ponto é que se trata de uma experiência comunitária que, por meio do alimento, pode promover uma partilha sensível. Nessa perspectiva, a compreensão da satisfação na sua articulação do corpo com a experiência de uma partilha sensível comum amplia os sentidos da satisfação e nos convida a pensar uma clínica e uma teoria psicanalíticas calcadas não apenas no sofrimento, mas no próprio exercício da felicidade.