
Redes sociais e a padronização da cultura
A cultura do desempenho, da eficiência e da exposição constante está nos afastando do pensamento profundo.
“Você precisa ver isso!”, ressoou aquela maldita notificação.
A frase, recorrente nas timelines digitais de qualquer um, parece surgir de todos os cantos: amigos, influenciadores, veículos de mídia e tantos outros. A pressão de fazer parte desta ou daquela conversa é, sabemos, imensa. Chega a ser paralisante. É totalmente necessário consumir o que está em alta? Sejam livros, séries, filmes ou canções, se não estivermos atualizados, não há como participar — e quem não quer participar? No meio desse turbilhão de plataformas e coerção disfarçada de conteúdo, às vezes nem sobra tempo para criarmos o discernimento interno que nos levará, inevitavelmente a uma simples pergunta: estamos mesmo escolhendo o que consumimos ou apenas seguindo o fluxo ditado pelas redes sociais? A cultura, hoje, viraliza. Mas, em sua velocidade, estaria também se homogeneizando?
Há algumas décadas, o consumo cultural era guiado por um sistema relativamente centralizado. Críticos escreviam em jornais impressos, os programas de TV destacavam eventos e estreias, e os cadernos culturais davam o selo de qualidade a peças de teatro, discos e livros. O acesso à informação era mais escasso e também mais mediado. Críticos de cinema, literatura e música formavam um público. Havia um pacto entre o crítico e o leitor: se essa pessoa que está escrevendo estudou, tem vivência no meio sobre o qual escreve, tem um repertório, então posso confiar nela. Na segunda metade do século XX, por exemplo, críticos como Pauline Kael e Roger Ebert, no cinema, e Harold Bloom, na literatura, ainda ditavam normas de qualidade e relevância. Suas opiniões influenciavam mercados inteiros, não só regionalmente mas ao redor do mundo. A relação entre público e obra era mediada por uma autoridade reconhecida, mesmo que ela fosse passível de críticas.
Com o avanço da internet e a popularização das redes sociais, esse papel se dispersou. Isso, a priori, é algo interessante. Não mais o poder de dizer o que é bom ou ruim está na mão de uma elite intelectual que reflete as desigualdades sociais e raciais do planeta. As redes parecem desestabilizar essa lógica, promovendo um gosto aparentemente horizontal. Mas esse novo cenário, que soa democrático, pode promover o efeito inverso: uma padronização ainda mais intensa do consumo cultural. A curadoria foi descentralizada, mas não democratizada como se imaginava. O que temos é um novo tipo de concentração, a do engajamento e dos algoritmos.
Plataformas como TikTok, Instagram e YouTube passaram a determinar o que vemos com base em nossos interesses. Ou, mais precisamente, no que prende mais a nossa atenção. O resultado disso é um ciclo de retroalimentação, no qual quanto mais pessoas falam de uma série, mais ela aparece para outras, que por sua vez também passam a comentá-la, e assim por diante. A sensação de “todo mundo está vendo” não é um fenômeno espontâneo, mas muitas vezes arquitetado por tendências algorítmicas.
Se antes a mídia exercia o papel de curadora, hoje essa função foi transferida para o algoritmo. E o algoritmo tem mais alcance do que qualquer mídia, impressa ou não, jamais teve. E o algoritmo não escolhe com base em valor artístico, histórico ou educacional. Ele calcula probabilidade de engajamento, tempo de permanência e reações. Trata-se de uma curadoria quantitativa, não qualitativa. Essas plataformas coletam dados comportamentais para prever, e moldar, nossas decisões. Vemos o que já gostamos, somos expostos ao que já clicamos, consumimos mais do mesmo. E, muitas vezes, estratégias externas se apropriam disso para fazer o seu produto virar.
Essa lógica, claro, favorece a padronização. É por isso que “todo mundo está vendo a mesma série”, “todo mundo está lendo o mesmo livro”. O perverso é que a sensação de escolha existe, mas dentro de um repertório pré-filtrado por critérios opacos e comerciais. O problema aqui não está no acesso democrático à fala — o que é, de fato, positivo —, mas na substituição da análise crítica por opinião acelerada e personalizada, muitas vezes guiada por parcerias comerciais. A autenticidade dá lugar à performance, e o consumo cultural vira mais um produto de marketing de influência.
A sensação de estar “por fora” pode ser tão incômoda quanto o desejo de estar atualizado. É o chamado fear of missing out, o famoso FOMO, aqui traduzido no medo de ficar de fora das conversas sociais e culturais. Cria-se a partir daí uma questionável tapeçaria, na qual muitas vezes se consome mais para pertencer do que por interesse genuíno, o que leva a uma enorme pasteurização do gosto.
Não por acaso, plataformas como Netflix e Amazon Prime Video passaram a estruturar suas produções baseadas em data-driven content, obras planejadas a partir de dados de comportamento dos usuários, limitando a ousadia estética e intelectual. Se todo mundo está vendo o mesmo, estamos deixando de experimentar o diferente.
Como resistir? Não se trata de demonizar as redes sociais. Elas deram visibilidade a obras e artistas que dificilmente passariam pelos filtros da crítica tradicional. Autores independentes, músicos de periferia e filmes de países não hegemônicos ganharam espaço real por meio do compartilhamento entre pares. Talvez a questão não seja combater as redes, mas compreender seus mecanismos e usá-las de forma crítica. O desafio é reprogramar o desejo, resistir ao adestramento da atenção e reencontrar o tempo para pensar e escolher. No entanto, é necessário desenvolver consciência crítica frente aos mecanismos que moldam esse consumo.
Educação midiática é uma das saídas. Incentivar leitores, espectadores e ouvintes a compreenderem como funcionam os algoritmos, como discernir entre publicidade e opinião autêntica, como procurar referências diversas antes de formar um juízo. Escolher, de fato, é muito mais trabalhoso do que seguir a corrente.
Outra possibilidade é buscar experiências culturais fora do digital: visitar bibliotecas, participar de cineclubes, conversar com outras pessoas sobre o que leram ou assistiram sem depender de rankings. A lentidão, nesse contexto, pode ser revolucionária.
Alguns movimentos já apontam para uma contracorrente. Clubes de leitura locais, cineclubes independentes e newsletters de críticos especializados vêm se tornando refúgios para quem quer escapar da lógica do mais comentado igual a melhor. A crítica cultural continua essencial. Ela é o espaço em que se pensa a cultura além do consumo imediato, onde o pensamento é instigado.
A cultura do desempenho, da eficiência e da exposição constante parece estar nos afastando do pensamento profundo. Reverter esse processo exige cultivar a diferença, mesmo que ela não renda likes. O verdadeiro ato de rebeldia cultural pode ser assistir a um filme desconhecido, ler um autor fora do radar, ouvir uma música que não está nas playlists editoriais.
Em outras palavras, cultivar o próprio gosto, mesmo que isso signifique estar um pouco fora da conversa e, quem sabe, começar uma nova.
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