Skip to content
Revista Amarello
  • Cultura
    • Educação
    • Filosofia
    • Literatura
      • Crônicas
    • Sociedade
  • Design
    • Arquitetura
    • Estilo
    • Interiores
    • Mobiliário/objetos
  • Revista
  • Entrar
  • Newsletter
  • Sair

Busca

  • Loja
  • Assine
  • Encontre
Lavadeiras, de Diego Mouro.
#53MitosCulturaSociedade

O mito em cada gesto

por Reginaldo Prandi

Quando falamos em mito, evocamos mais do que uma história fabulosa. Mito é narrativa primordial, palavra fundadora, memória arquetípica da humanidade. Está presente desde os tempos mais remotos e continua conosco, mesmo quando acreditamos tê-lo superado com a ciência ou substituído com a razão. 

O mito funda, explica e orienta. Não pretende simplesmente descrever fatos observáveis, mas oferecer sentido para o que escapa à observação. Conta-se o mito não para comprovar, mas para pertencer. Ele nos diz de onde viemos, o que somos e por que sofremos. Está presente nos rituais, nos símbolos, nos sonhos, nas imagens que movem nossos afetos e decisões. 

Há mitos que falam da criação do mundo, outros que explicam a morte, o amor, a fome, o sexo, a injustiça, a esperança. São infinitos como as perguntas humanas. E embora não sejam todos iguais, repetem estruturas recorrentes: o herói, a travessia, a queda, o retorno, a salvação. Cada povo os conta com seus próprios deuses, heróis e gente comum, paisagens e bichos, mas é como se todos sonhassem os mesmos sonhos. 

Não é raro que versões quase idênticas de um mesmo mito surjam em cantos distantes do mundo, como se diferentes culturas respondessem com imaginação semelhante às mesmas inquietações humanas. O mito do dilúvio, por exemplo, aparece em tradições tão diversas quanto a babilônica, a hebraica e a indígena brasileira. Deuses solares, deuses gêmeos, deuses que morrem e renascem são temas recorrentes, de Osíris a Cristo, de Dioniso a Oxalá. Há sempre um herói que parte, sofre, aprende e retorna. Há sempre um mensageiro, uma mãe cósmica, uma árvore da vida. A mitologia, nesse sentido, é um espelho plural da condição humana. 

Em muitas culturas, há um deus ou uma deusa para cada aspecto da vida. Para o amor, Afrodite, Oxum, Inanna. Para a guerra, Ares, Ogum, Sekhmet. Para o mar, Poseidon, Iemanjá, Varuna. Para o fogo, Agni, Xangô, Vulcano. Para a colheita, Deméter, Oxóssi, Centeotl. Para a justiça, Xangô, Maat, Mitra. A religião cuida de atribuir funções e criar narrativas para organizar o mundo e apaziguar o caos. Quando o cristianismo se fundou no deus único dos judeus, cultuando num só Deus as três pessoas da Santíssima Trindade misteriosa — o Pai, o Filho e o Espírito Santo —, os santos, humanos em vida, santificados na morte, herdaram essa divisão de tarefas. Santo Antônio cuida dos enamorados; São Jorge, da guerra; Santa Luzia, da visão; São Lázaro, da doença. Cada santo, como cada orixá, precisa de um mito que explique por que faz o que faz e por que merece preces, oferendas e promessas.  

Não há religião sem mito. Seja em tradições orais ou em escrituras sagradas, o mito está sempre presente como trama fundadora do sentido religioso. As histórias da criação, do dilúvio, da queda, da redenção, dos profetas, dos santos e dos iluminados, tudo isso são mitos. Estão nos Vedas da Índia, na Bíblia dos cristãos e judeus, no Alcorão dos muçulmanos, no Kojiki do Japão, no Popol Vuh dos maias, nas histórias cosmogônicas dos iorubás, dos guaranis, dos bantos. O texto sagrado é, antes de tudo, uma mitologia canonizada. E mesmo onde só há transmissão oral, como no candomblé, no xamanismo ou em muitas tradições indígenas, a mitologia pulsa como alma da religião. 

Nas religiões afro-brasileiras, os mitos dos orixás não apenas relatam feitos e façanhas, mas enraízam a ética e o estilo de vida de seus praticantes. Quem ouve o mito de Xangô aprende o valor da justiça; quem escuta as histórias de Oxum percebe que o cuidado, o prazer e a beleza também são formas de poder. Os mitos são mapas da alma coletiva. 

No pensamento mitológico, cada mito é autônomo. Os mitos não obedecem à ordem cronológica, à lógica causal nem à linearidade que caracterizam o pensamento filosófico e científico. Por isso, há quem veja contradições entre mitos, mas o que há, na verdade, é pluralidade de sentidos. 

Não aconselho, assim, a buscar coerência no conjunto dos mitos. No candomblé, por exemplo, cada orixá tem muitos deles, e cada mito se conta de um jeito diferente. Um diz que Exu traiu Ogum; outro, que o salvou. Um diz que Iansã venceu a morte; outro, que ela a teme. Esses contrastes não são incoerências, mas variações simbólicas de uma verdade mais profunda, que não se esgota em um único enunciado. Os mitos se contradizem porque a vida também se contradiz. 

O pensamento mítico é plástico, múltiplo, aberto. E por isso sobreviveu ao avanço das teologias e das ciências. Quando a razão moderna quis banir o mito, ele apenas se deslocou: passou a habitar o romance, o cinema, a publicidade, a política. Os heróis dos quadrinhos, os vilões das redes sociais, os discursos fundadores das nações — todos se constroem sobre o esqueleto invisível do mito. 

Mesmo no cotidiano mais banal, há resquícios míticos em nossa linguagem, em nossos gestos, em nossos medos. Atravessamos a rua e fazemos um sinal contra o azar. Batemos três vezes na madeira. Chamamos de “milagre” aquilo que escapa ao cálculo. Não somos tão modernos quanto imaginamos. 

O mito não habita apenas as religiões. Está também nos mitos fundantes das nações, dos impérios, das revoluções. Toda pátria tem sua origem mítica, seu herói civilizador, seu mártir. As grandes empresas tentam construir mitos de si mesmas, com fundadores visionários, histórias de superação, promessas de futuro. Marcas querem vender, mas precisam inspirar confiança, encarnar valores, entrar no imaginário coletivo. A publicidade é, hoje, uma das principais indústrias dessa mitologia que habita o mercado. 

Em muitas tradições míticas, como no candomblé, o tempo não é uma linha reta que vai do passado ao futuro: é um círculo. Nessa concepção, as histórias não seguem uma sequência irrepetível, elas retornam. O que se vive hoje já foi vivido antes e voltará a acontecer adiante. É o mito que narra o que se passou em tempos imemoriais e, ao mesmo tempo, o que se vive agora. 

Segundo essa tradição, os mitos não se organizam como capítulos de uma única história coerente, encadeada. Cada mito guarda uma verdade própria. Essa visão contraria o pensamento ocidental moderno, que entende o tempo como linear: uma linha contínua, tecida de causas e efeitos, em que tudo se explica por uma lógica de antecedente e consequência. O mito, ao contrário, se explica pelo desejo dos deuses, por seus humores passageiros ou pelo destino inscrito na cabeça de cada um ao nascer. Daí a impressão de que os mitos se contradizem. Mas não: eles apenas refletem a multiplicidade da vida. Nenhuma narrativa, sozinha, dá conta do mistério do mundo. E da vida. 

Não é raro que uma pessoa — viva ou morta — tenha suas aventuras narradas das mais enriquecidas maneiras, até o ponto em que já não se sabe mais quem ela foi exatamente. Ela vira “mito” e passa a habitar o mesmo espaço imaginativo no qual vivem anjos e demônios. Adorada por uns, odiada por outros. 

E não são só pessoas. Esse processo também se aplica a acontecimentos que fogem às regras do cotidiano, a lugares idílicos, a sombras da noite ou nevoeiros do dia. Mas aqui, “mito” ganha um outro sentido. 

“Mito” pode ser sinônimo de “lenda”. 

Essas duas palavras, aliás, vieram por caminhos diferentes. “Mito” vem do grego mythos, e chegou a nós por meio do latim. “Lenda” vem do latim medieval legenda, que designava originalmente os relatos da vida dos santos, hoje reunidos na hagiografia, campo tratado por especialistas católicos. Segundo o dicionário Houaiss, mito é um “relato fantástico de tradição oral, geralmente protagonizado por seres que encarnam as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana; lenda”. O próprio dicionário inclui como sinônimos de mito: narrativa, história, fábula, e até quimera. 

Em iorubá, a língua ritual das religiões dos orixás, mito é ìtàn — termo ainda ausente do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, mantido pela ABL, mas vivo na fala dos que cultuam os orixás. 

De uma pessoa notável, em qualquer área da vida humana, costuma-se dizer que “fulano (ou fulana) é um mito vivo”. 

A língua é assim: as palavras têm muitas acepções. No português que falamos, “miserável” pode ser o pedinte, o pobre diabo que estende a mão implorando por uma moeda. Mas a palavra também serve para aquele que vira o rosto, que recusa a esmola e que poupa o que nem lhe falta. “Miserável” aplica-se aos contrários. 

Já o mito que sustenta a alma, explica o mundo e nos explica, que orienta o comportamento, consola e serve de farol nos caminhos da vida, esse mito nada tem a ver com o outro — aquele que serve para desempatar opiniões, rotular pessoas, simplificar ideias ou alimentar manchetes sob o selo: “verdade ou mito?”. Como mostrou Roland Barthes, em Mitologias, o mito moderno já não se apresenta como uma fábula sagrada, mas como um discurso disfarçado de naturalidade, que transforma ideologia em senso comum. Para Claude Lévi-Strauss, o mito é uma forma de pensamento estruturante, que organiza em narrativas simbólicas e reiterativas as contradições da experiência humana, sem obedecer à lógica causal da história. Mircea Eliade, por sua vez, via no mito o relato de um tempo sagrado e arquetípico, que não apenas remonta ao passado, mas funda o presente a cada vez que é narrado. E Wande Abimbolá, em Ifá Will Mend Our Broken World, sustenta que os mitos da literatura oracular iorubá — os itan de Ifá — oferecem respostas vitais aos dilemas contemporâneos da humanidade, reafirmando o valor da tradição como caminho possível de recomposição do mundo e do sentido da vida. 

No fundo, o mito continua sendo nossa maneira mais íntima de narrar a existência. Um corpo dançando, uma canção de ninar, um pedido aos céus, uma prece silenciosa. Tudo isso é mito em ato. porque ele não é só aquilo que se conta, é também o que se vive. E, mesmo sem sabê-lo, vivemos cercados de mitos. Em cada gesto. 

Mas o que é o mito, afinal? Difícil dizer. Mas se pode afirmar sem medo de errar que mito não é mentira. Nunca foi. Ao contrário do que o uso popular e banalizado do termo sugere, o mito é uma forma profunda de enunciar verdades. Não as verdades dos tratados científicos ou dos manuais de lógica, mas aquelas que tocam a alma humana e seu espanto diante do mundo. O mito fala do que somos e do que não sabemos dizer com outras palavras. A linguagem do mito é simbólica, e, como todo símbolo, aponta para algo que vai além do que é dito.

Gostou do artigo? Compre a revista impressa

Comprar revista

Assine: IMPRESSO + DIGITAL

São 04 edições impressas por ano, além de ter acesso exclusivo ao conteúdo digital do nosso site.

Assine a revista
Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sobre a capa

#35 Presente Artigo

por Marcelo Amorim

Club Silêncio

#11 Silêncio Cultura

por Facundo Guerra Conteúdo exclusivo para assinantes

Quem seremos nós?

#27 Perspectivas Cultura

por Claudia Feitosa Santana Conteúdo exclusivo para assinantes

Pão de queijo

#20 Desejo Cultura

por Eduardo Araújo

Incorporar para transformar: a arte em escala pública

Arte

Sobre o divisor de Lygia Pape

#19 Unidade Arte

por Diego Matos Conteúdo exclusivo para assinantes

Occupy São Paulo

#12 Liberdade Cultura

por André Tassinari Conteúdo exclusivo para assinantes

Tensões entre cor e amor: construções sociais nas relações de afeto

Cultura

por Gustavo Freixeda

Amarello 15 anos

#51 O Homem: Amarello 15 anos Editorial

O que existe além do que já foi dito sobre o amor

#8 Amor Crônica

por Carolina Ferraz Conteúdo exclusivo para assinantes

Espaço brasileiro em espaços complicados

#4 Colonialismo Cultura

por Bruno Pesca Conteúdo exclusivo para assinantes

Quando deixei de te amar

#12 Liberdade Artigo

por Helena Cunha Di Ciero Conteúdo exclusivo para assinantes

  • Loja
  • Assine
  • Encontre

O Amarello é um coletivo que acredita no poder e na capacidade de transformação individual do ser humano. Um coletivo criativo, uma ferramenta que provoca reflexão através das artes, da beleza, do design, da filosofia e da arquitetura.

  • Facebook
  • Vimeo
  • Instagram
  • Cultura
    • Educação
    • Filosofia
    • Literatura
      • Crônicas
    • Sociedade
  • Design
    • Arquitetura
    • Estilo
    • Interiores
    • Mobiliário/objetos
  • Revista
  • Amarello Visita

Usamos cookies para oferecer a você a melhor experiência em nosso site.

Você pode saber mais sobre quais cookies estamos usando ou desativá-los em .

Powered by  GDPR Cookie Compliance
Visão geral da privacidade

Este site utiliza cookies para que possamos lhe proporcionar a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.

Cookies estritamente necessários

O cookie estritamente necessário deve estar sempre ativado para que possamos salvar suas preferências de configuração de cookies.