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Foto de Gleeson Paulino.
#54EncantoCulturaSociedade

Identidade, território e tecnologia: um olhar para o futuro com Fernanda Kaingang

No ano em que o Brasil assume protagonismo nos debates ambientais, políticas para a conservação da biodiversidade e demarcação de terras ainda são desafios constantes.

Fernanda Kaingang, nascida em Tapejara, na Terra Indígena Carreteiro (RS), treina desde o seu território para ter resiliência. Integrante da metade Kamé, recebeu da sua avó, Joana Caetano, o nome Jófej, que simboliza a cura e a missão que tem na Terra. Com mais de 20 anos dedicados à defesa da justiça e do direito dos seus povos, ela defende que nos territórios estão os verdadeiros doutores do conhecimento, não reconhecidos pela academia da mesma maneira. Como uma ponte entre dois mundos, Fernanda leva o que aprendeu com seus ancestrais e luta para voltar os olhos aos saberes daqueles que verdadeiramente conhecem a floresta e a biodiversidade. 

A advogada, mestre em direito público e doutora em patrimônio cultural, foi a primeira indígena formada em Direito na região Sul e a primeira mestra em Direito no Brasil. As primeiras vezes, para Fernanda, representaram solidão. Como um corpo-território, ser uma das mulheres indígenas em posição de tomada de decisão ainda exige demarcar territórios físicos, intelectuais, culturais e judiciais com resistência, discriminação e indimidação. 

Citando Daniel Munduruku, Fernanda lembra que o mundo dos brancos é dividido em caixas, e eles não enxergam as coisas interligadas. “Quando a biodiversidade cai e perdemos o território, a cultura também se perde, porque ela brota dele”. Em um ano em que o Brasil — e, principalmente, a Amazônia — pela primeira vez vira centro de discussão climática na COP30, Fernanda clama que a demarcação de territórios seja considerada estratégia de mitigação de impacto das mudanças climáticas e de conservação da biodiversidade, mas que isso seja debatido com quem sabe manter a floresta em pé e não com discursos vazios. 

Atualmente, Fernanda é especialista em indigenismo da Funai e lotada na Coordenação Regional da Funai em Cuiabá (MT), na região Centro-Oeste, mas também foi a primeira mulher indígena a dirigir o Museu Nacional dos Povos Indígenas, cargo que ocupou até julho deste ano. Seu mandato abriu uma estrutura do museu em Goiânia (GO), em 2024, e no Rio de Janeiro foi aprovado um projeto de reabertura com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A principal conquista e objeto de luta, hoje, é que o museu não tenha mais culturas colocadas atrás de um vidro e descritas por terceiros, mas sim culturas vivas.  

Suas palavras firmes, que ecoam como golpes, reforçam que o olhar para o futuro não tem outra direção: é olhar para a ancestralidade. 

Gostaria que me falasse do seu nome indígena Kaingang. Quem te deu? 

Meu nome é Jófej. O “j” tem som de “i” na língua do meu povo. Simboliza cura. É a flor de uma erva medicinal, como chá, camomila. São os anciões que escolhem os nomes, pela sabedoria deles. Minha avó, que era erveira, parteira, escolheu. É típico da metade Kairu, a metade mais sábia, dos pajés, da noite. Ela tentava me ensinar sobre as plantas e ervas, e eu não demonstrava interesse. Queria brincar. Ela dizia: “Você não é Kairu, é Kamé”, considerado a metade mais resistente, forte. Eu dizia: “Vó, a senhora errou esse nome. Como me deu o nome de um cházinho? Podia ter me dado estrela, diamante, adequado à minha pessoa”. Ela dizia: “Teu nome foi escolhido para definir o teu papel social, a tua missão na Terra”. 

Hoje sou especialista em patrimônio, propriedade intelectual e conhecimentos tradicionais em escala global. Uma das representantes da América Latina, com atuação de vinte anos em diferentes organismos internacionais. Minha avó sabia exatamente o que estava fazendo, mas só percebi anos depois. Quando fui para a faculdade, ela me abraçou, chorou e disse: “Eu não vou mais te ver, mas não esqueça quem você é e de onde veio”. A gente prioriza os títulos acadêmicos e não tem noção dos saberes que residem dentro dos territórios, concentrados em pajés, rezadeiras, parteiras, que são pesquisados pela universidade sem que a universidade devolva e reconheça.  

E o que mais você aprendeu com ela?  

Exatamente isso: que o título acadêmico é, muitas vezes, resultado de um extrativismo intelectual. Os verdadeiros doutores estão lá. Não se forma um pajé com sete anos de estudo, é uma vida inteira. A gente simplesmente pesquisa, como a academia, mas não dá para eles o título de notório saber que teriam direito, com a remuneração de um professor doutor. Isso é exploração, é prática colonialista. Se a ciência estivesse só na indústria e na universidade, não seria necessário estar nos territórios pesquisando. 

Vejo nas universidades, em clínicas especializadas, o parto de cócoras, parto do meu povo, e os povos indígenas sendo submetidos a práticas de parto deitado, que é violento, contrário à natureza. Os povos indígenas têm técnicas, processos e conhecimentos que hoje são objeto de estudo e produtos de patente no Norte Global, e simplesmente fica se sustentando esse discurso de que o que é de fora é melhor, e o que nós temos é folclore e não tem dono. 

Aprendi com minha avó que ciência e tecnologia não existem só na academia. 

Puxando essa questão do colonialismo e do folclórico, você já tratou do conceito do que é um indígena de verdade e da ideia de que o indígena só é indígena se estiver na aldeia. Também falou, agora, sobre a academia. A gente vê o manto Tupinambá ser exaltado em museus europeus, longe do contexto original, como simbolismo dessa expropriação cultural, por exemplo. O indígena permanece visto como folclórico? Que tipo de admiração é escondida no interesse de financiamento para os estrangeiros? 

O Brasil tem uma dificuldade enorme com a sua própria identidade. O princípio de pureza racial, para começar, não existe. O sangue do brasileiro é o mais miscigenado do mundo, formado por mulher negra, indígena e homem branco europeu. Isso é estupro. Temos uma desinformação sobre a questão da identidade dos povos. O Censo de 2022 registra 391 povos indígenas. Imaginar que eles têm que ser como eram em 1500, quando da invasão, é dizer que os descendentes que vieram nos navios da Europa tinham que ser iguais, e eles não são. 

A visão do brasileiro sobre os povos indígenas é folclórica, romantizada, mal informada. As pessoas falam de invisibilidade e de apagamento, mas, como advogada, tenho sustentado que a invisibilidade exclui a culpabilidade, o dolo. O que é que se faz com o conhecimento dos povos indígenas? Se diz que somos possuidores, detentores, guardiões. Juridicamente isso é o quê? Alguém que não é proprietário. É possuidor. As pessoas dizem: “Se você não está no território, você não é indígena”. Se você entrar em uma garagem, vira carro?  

Vivemos em um mundo em crise. Uma crise climática, econômica, moral, social e ambiental sem precedentes. A gente está na sexta extinção em massa deste planeta, e vai para uma COP30 em Belém e vamos ver quem vai comparecer nas negociações para dizer: “Por que os acordos não dão certo? Porque quem entende a floresta em pé não está lá dentro, negociando”.  

Falando em COP30, temos visto o amplo foco no simbolismo pela escolha da Amazônia brasileira ser, pela primeira vez, o centro das discussões climáticas, e, ao mesmo tempo, vemos avançar medidas que impactam esse centro de riquezas a serem exploradas nas terras mais importantes da biodiversidade. Como a Terra tem sido mostrada, vista, e o que que não tá se vendo nela? 

Davi Yanomami, no livro A queda do céu, fala que o mundo do não indígena é dividido em caixinhas. A gente não separa canto da dança, da reza, da cura. As coisas funcionam interligadas. Ele fala que “esse mundo de vocês está doente, porque estão jogando veneno, contaminando a água que os filhos vão beber. A alma de vocês adoeceu, porque a preocupação é dinheiro. Pensam na mercadoria e esqueceram todo o resto. A gente está batendo maracá, avisando que a floresta está adoecendo. E quando os maracás pararem de tocar, o céu vai cair em cima da nossa cabeça”.  

Quando a biodiversidade cai, a cultura também se perde, porque ela brota dele. Dividir esse patrimônio em gavetinhas não vai funcionar para proteger. Esquecer que a floresta tem povos e não demarcar esses territórios… Os territórios representam 80% das áreas mais conservadas da terra. 

Queremos ser levados em consideração na COP30. Que a demarcação seja considerada uma estratégia de mitigação de impacto negativo de mudança climática, de conservação de biodiversidade, de área protegida, porque sabemos manter a floresta em pé. A presença indígena em condições dignas, não acampados.  

O recado que os povos têm para o mundo na COP30 é: não temos dois planetas e meio. Independente das pessoas acreditarem ou não, quando a água recua no leito do mar, vem o tsunami. A Amazônia passou de 20% de desertificação, está chegando ao ponto de não retorno. Nós precisamos de atitudes, medidas, dignidade, visibilidade, reconhecimento de direitos. Não precisa criar, reconhece o que já tem. Onde estão as medidas concretas? Palavras que o vento leva, como dizem os Guarani Mbya, não vão resolver a crise ambiental. 

Você chegou a comentar sobre essa questão das representações indígenas no governo. Temos visto movimentos de representação com nomes de indígenas — principalmente mulheres — nos espaços de poder e em tomadas de decisões, como Sônia Guajajara no ministério e Joenia Wapichana na Funai. Como você enxerga a posição desses corpos-territórios?  

Como defensora e ambientalista, nascer mulher em um país feminicida já é complicado. Fazer direito, se tornar uma defensora ambiental em um país que mata seus ambientalistas é risco triplo. Ter mulheres à frente de gestões governamentais no poder executivo é uma conquista. É suficiente? Não. Precisamos de presença indígena também dentro das cortes superiores do país. Onde está a presença indígena, a voz? Por que tantos desmandos? Porque não tem representação ali dentro. O corpo-território precisa estar presente para falar: “Este território era nosso”. Ser corpo-território é demarcar territórios físicos, intelectuais, culturais, literários, acadêmicos e judiciais. Tem resistência, discriminação, intimidação. Falta recurso humano, financeiro, mas resistimos há 525 anos porque somos resilientes.  

Além desse seu lugar de primeira mulher indígena a dirigir um museu federal indígena, você também foi a primeira advogada indígena na região Sul e com título de mestre em uma universidade brasileira. O que representa um primeiro lugar para ti e para os que vão vir depois de ti?  

Representava solidão. As pessoas perguntavam, quando peguei o título de advogada: “Como se sente?”. E eu respondia: “Me sinto só”. Hoje isso não é mais uma realidade, existe uma rede de advogados indígenas, mas o mercado ainda é muito questionável.  

Quanto aos filhos primeiros deste chão, que políticas públicas estão sendo feitas para segurar a reparação por tudo o que sofremos no passado e no presente? Hoje morre gente. Se proíbe de falar línguas. Se nega a existência de povos indígenas para que se libere territórios para a expansão do agronegócio, da mineração e da madeireira. Os territórios estão arrendados para o agronegócio até a soleira da porta, e isso é crime ambiental. É preciso sentar e corrigir essas aberrações jurídicas que se criam no Brasil por falta de diálogo, porque se cria em gabinete de gente que não conhece território. 

Retomando a questão do Museu Nacional dos Povos Indígenas, como foi estar à frente de uma instituição tão representativa para os povos e, também, o quão sensível ainda é essa implementação de recursos e políticas públicas direcionadas à manutenção da cultura? 

Foi muito difícil, talvez exatamente por isso eu tenha sido escolhida para encampar essa demarcação de um território museológico e cultural. Houve muita resistência, machismo e racismo institucional. Sofri falta de apoio como gestora, mas a gente reabriu a estrutura em Goiânia. Conseguimos aprovar, com o Iphan, o projeto executivo. Trouxemos a primeira coleção de peças repatriadas, um processo de como não fazer uma repatriação. 

Este museu não será mais de culturas colocadas atrás de um vidro e descritas por terceiros, será um museu de culturas vivas. E faremos essa política de cultura. Não é aceitável fazer uma exposição de peças repatriadas sem perguntar para os povos aos quais as expressões culturais pertencem se são sagradas. O museu hoje tem uma proposta de plano museológico. A gente espera que ele seja aprovado, para que oriente essa atuação de maneira respeitosa com a diversidade cultural que ele representa. 

Foi difícil, mas você é integrante da metade Kamé, da família dos guerreiros. O que dá sentido à tua luta? 

Sou filha de um povo grande que habita territórios pequenos. As pessoas que falam de povos indígenas no Brasil não pensam que tem povos indígenas no sul. Ocupar esses espaços, antes de mais nada, é representar essa diversidade, mas também mostrar que a gente veio para executar o que não foi feito antes e não poderia ser feito por terceiros.  

Conheço todas as estruturas da Funai, mas vim porque este museu precisa de presença indígena. Não vim para ficar, vim para abrir estruturas. A gente também não acha que o lugar do museu tem que ser um casarão histórico português, tem que ter uma estrutura circular, assim como o pensamento dos nossos pajés. Tem que ter DNA indígena. E a transformação dele em uma fundação é para que se possa ter a autonomia que essa diversidade cultural exige. Quem sabe, quando eu for ministra indígena no Supremo, a gente consiga mobilizar apoio para isso. 

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