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A intelectual italiana Silvia Federici. Foto: Reprodução.
#54EncantoCulturaSociedade

Refazer vínculos e despertar a magia: Silvia Federici e a política dos comuns

por Revista Amarello

(Exclusivo Amarello 54 edição digital)

“Falamos em comuns, no plural, inspirados pelo lema zapatista ‘Um não, muitos sins’.” Assim escreve Silvia Federici em Reencantando o mundo: feminismo e a política dos comuns (lançado em 2018 e traduzido para português em 2022), de maneira a recusar qualquer universalismo que imponha uma forma única de vida. A tal política dos comuns nasce dessa pluralidade quase radical, como uma prática cotidiana de reconstrução do vínculo social e de reencantamento da Terra. O capitalismo nos ensinou a viver uma realidade fragmentada: a trabalhar sem ver sentido, a produzir sem partilhar, a consumir sem nos reconhecer no que fazemos. Separou o corpo do território, o cuidado da política, o tempo da vida. Contra essa lógica que isola e exaure, talvez caiba outra gramática para a existência, uma em que ela signifique, antes de tudo, uma trama compartilhada. 

Federici — cujo magnum opus é o clássico do feminismo materialista Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, de 2004 — não está evocando uma nostalgia pastoral nem um retorno ao passado comunitário. O que é colocado em pauta pela autora, que tem uma longa trajetória de militância e pesquisa, é a reapropriação do poder de decidir coletivamente sobre a vida, frente à dupla expropriação do capital e do Estado. É fazer do comum um verbo: comunar, partilhar, recriar juntos. Esse gesto político simples seria o ponto de partida de uma reorganização civilizatória. No tempo desencantado, também conhecido como atualidade, tal tarefa seria a mais urgente.  

“Quando falo em reencantar o mundo”, escreve a autora ítalo-americana, “refiro-me à descoberta de razões e lógicas diferentes das do desenvolvimento capitalista.” Ou seja, ela situa o problema no coração do capitalismo contemporâneo, que subordina a reprodução da vida à acumulação. A extração de valor não se limita à fábrica, mas invade a casa, o corpo e o tempo.  

“A história da acumulação primitiva não pode ser entendida do ponto de vista de um sujeito universal abstrato, pois um aspecto essencial do projeto capitalista é a desarticulação do corpo social pela imposição de diferentes regimes disciplinares.”  

O capitalismo não apenas produz diferenças e hierarquias. Ele depende delas. São parte de sua engrenagem, o meio pelo qual a exploração se torna possível e contínua, quase incontornável. A clássica cisão entre o produtor e seus meios de produção é uma peça que o capitalismo jamais deixa de encenar. Mudam os atores, mas o roteiro da expropriação é sempre o mesmo. A violência não é o ponto de partida do capitalismo, mas o seu método permanente. 

“Em resposta ao ápice de um ciclo de lutas sem precedentes — anticolonial, operária, feminista —, não surpreende que a acumulação primitiva tenha se tornado um processo global e permanente, com guerras e expropriações massivas que hoje surgem em todas as partes do planeta.” 

Federici chama de “cercamentos” o processo pelo qual o capitalismo tira das pessoas o acesso direto ao que é essencial para viver — lê-se: terra, tempo, corpo, conhecimento… — e transforma tudo em propriedade ou mercadoria. Antigamente, isso acontecia quando camponeses eram expulsos das terras comuns na Europa moderna; hoje, vemos isso na privatização de serviços, na exploração de dados e na forma como a tecnologia captura nossa atenção. Em outras palavras, os cercamentos são uma prática permanente do capital: eles quebram vínculos sociais, transformam relações humanas em recursos e nos afastam da sensação de pertencimento e encanto no mundo. 

Um exemplo é a financeirização. No capitalismo industrial, a exploração acontecia principalmente na produção, mas, na fase atual, ela se desloca para o crédito, para os fluxos de capital e para a dívida. O dinheiro deixa de circular apenas como meio de troca e passa a gerar lucro a partir de si mesmo, não mais pela produção de bens, mas pela promessa de pagamento futuro. Ele gira sobre si mesmo e transforma o tempo em penhor. Nesse sistema, a dívida funciona como instrumento de governo, pois, ao transformar o futuro em garantia e o desejo em obrigação, ela regula comportamentos. No discurso neoliberal, o endividamento é apresentado como inclusão, como gesto de autonomia financeira. Na prática, é uma nova forma de cercamento, que transforma necessidades básicas em contratos e submete a vida à lógica do pagamento. 

A tecnologia também reforça esse movimento. Ela promete liberdade, mas oferece controle. Automação e plataformas digitais criam a ilusão de autonomia enquanto aumentam o isolamento e a dependência. Se não se pode rejeitar a tecnologia inteiramente, é importante saber que ela faz com que o mundo seja visto como recurso, e este deixa de ser um tecido de interdependências que serve à vida, e não ao lucro. Os comuns surgem como resposta. Ao perceber que nem Estado, nem mercado garantem a vida, Federici propõe reapropriar coletivamente a riqueza já produzida para inventar formas novas de viver juntos no futuro. 

Reencantar o mundo é devolver valor àquilo que o capital transformou em mercadoria. É reencontrar no corpo, na terra e nos vínculos humanos não instrumentos de produção, mas formas de existência. O reencantamento, de aparência tão basal, é mega político, porque recoloca a vida no centro. O trabalho reprodutivo — cuidar, cozinhar, plantar, educar — é o primeiro território de resistência. A autora explica o porquê: “Produzir seres humanos ou colheitas para a nossa mesa é uma experiência qualitativamente diferente da produção de carros, pois requer uma interação constante com processos naturais, cuja modalidade e cujo desenvolvimento não controlamos.”  

O comum nasce desse reconhecimento de interdependência, uma espécie de ontologia da relação. Essa perspectiva permite a Federici olhar para o futuro sem ingenuidade, mas com um tipo de esperança materialista.  

E onde entra o feminismo nisso tudo? O feminismo, na verdade, é o coração da política dos comuns. Foi através das mulheres que Silvia Federici enxergou como o capitalismo organiza e explora a base da vida. Sua atuação e seus estudos sobre gênero e trabalho giram em torno da reinterpretação de tudo à luz da violência histórica contra as mulheres. Não existe produção sem reprodução. Ou seja, o trabalho de cuidar, alimentar, limpar, criar e manter a vida é o que torna possível todo o resto, inclusive o trabalho assalariado. Historicamente, esse trabalho ficou invisível e desvalorizado, realizado majoritariamente por mulheres, dentro das casas, sem remuneração e sem reconhecimento social.  

Já na casa dos seus oitenta anos, Federici dedicou sua vida a ponderar sobre como o capitalismo se apoia na exploração gratuita daquilo que garante a continuidade da vida. Por isso, o feminismo, para ela, não é apenas uma luta por igualdade entre homens e mulheres, mas uma crítica à estrutura econômica e social que transforma o cuidado em dever privado e naturaliza a desigualdade. Sem o feminismo, a seu ver, o comum não existe, porque é nele que se aprende, concretamente, o que significa sustentar a vida em conjunto. Esse reencantamento não é o retorno ao mito, mas a restituição da magia à matéria. A autora escreve que “a capacidade de interpretar os elementos, descobrir as propriedades das plantas, obter o sustento da terra e guiar-se pelas estrelas foi, e continua sendo, uma fonte de autonomia a ser destruída.”  

Curiosamente, mesmo com tudo isso em mente, é difícil até conceber que possa dar certo. Há boas intenções, propostas de justiça e solidariedade, mas parecem esmagadas por uma lógica maior, impessoal e incessante. Por que será? Por que pensar assim pode soar como um descolamento da realidade? No fim, por mais íntegro que um lado seja, o capitalismo se mostra quase invencível, impondo suas regras e determinando vencedores e perdedores com uma frieza quase mecânica. Resta-nos perguntar: é possível encontrar brechas para resistir? Ou estaremos condenados a reagir, aceitando a derrota como inevitável? Pode o encantamento triunfar sobre o desencantamento? 

Assim como a violência funciona como instrumento do capitalismo, o reencantamento e o feminismo se apresentam como armas não violentas da política dos comuns, oferecendo munição para reorganizar o mundo a partir da partilha, do cuidado e da transformação coletiva. Talvez seja esse o grande impasse: pensar nisso, agir e não cair na abissal vala do cinismo.  

A briga é desigual, mas há muita luta na força que não é bruta.

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