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#54EncantoSociedade

Gira encantada

por Chiara Ramos

Obra de Chico da Silva, Sem título.

No mundo-desencanto,
Gira a roda em cantoria.
Sentido anti-horário,
Retorno ao passado.
No solo sagrado,
(Sobre)vive a ciência,
Jurema que sagra
Em rezo, em canto.
Semente plantada,
Encantaria

Maracá e tambor,
Ancestralidade viva,
Preto Véi alumeia
Cabôco que guia.
Unindo dois povos,
No encanto que rima.
Quilombos e Aldeias
Coragem e rebeldia.
Terras se guardam
Na força da gira.
Ritos e memórias
Modos de vida.
(Re)Encantarias

A modernidade, tal como se constituiu sob o signo do colonialismo europeu, produziu aquilo que podemos chamar de um mundo de desencanto: uma forma de organizar a vida que separa, fragmenta e hierarquiza tudo o que toca. Um mundo que se entende como centro e medida de todas as coisas, no qual a razão é tomada como única via de conhecimento, e o sagrado foi privatizado e encarcerado em instituições, dogmas e estruturas de poder. Um mundo que se afirma universal ao mesmo tempo em que tenta apagar e deslegitimar todas as formas de existência que não se conformam à sua lógica. 

Esse processo deslocou o sagrado para fora da vida cotidiana, transformando-o em objeto de culto institucional, em promessa pós-morte, em doutrina abstrata. A espiritualidade virou “religião”. A fragmentação dos saberes — essa divisão entre ciência, fé, arte, cultura, trabalho — é uma tecnologia de controle. Um mecanismo que buscou padronizar o mundo, disciplinar corpos, apagar cosmovisões e tornar o sagrado previsível e administrável. O objetivo era simples: transformar sujeitos em força de trabalho, e territórios, águas, florestas e espíritos em mercadoria. 

Mas para nós, povos afrodiaspóricos e indígenas, o sagrado nunca precisou ser religado, porque nunca foi separado. Não existe essa cisão entre corpo e espírito, entre natureza e humanidade, entre visível e invisível. Não se trata de “crer” ou “cultuar” algo fora de si. Trata-se de reconhecer que a vida é relação contínua com tudo o que existe e que essa relação se manifesta em gestos cotidianos. 

Nesse contexto, por exemplo, a tradição iorubá, nominada de Ifá, não é propriamente uma religião. Ifá é um sistema complexo de conhecimento que envolve filosofia, arte, ética, medicina, ciência, política e memória. Ifá é método de vivência no mundo. Assim também são o candomblé e a jurema, experiências diaspóricas com o sagrado, que resistiram a todas as tentativas de apagamento. 

A escravização não apenas sequestrou corpos, também tentou arrancar a alma, a memória, a linguagem e a fé dos povos africanos. Na cidade de Ouidah, por exemplo — um dos principais pontos de embarque da chamada Costa dos Escravos —, havia um ritual imposto antes da travessia: os homens eram obrigados a girar nove vezes ao redor da árvore do esquecimento, as mulheres, sete. A intenção declarada pelos reinados não era apenas romper a ligação territorial, mas impedir que a memória, uma vez atravessando o Atlântico, pudesse retornar como maldição contra aqueles que lucravam com a venda de seres humanos. 

O giro, portanto, não era um gesto neutro: era tentativa de desvincular o corpo de sua linhagem, silenciar a ancestralidade, impedir o retorno da palavra, da lembrança e da justiça. Os memoriais construídos na década de 1990 — como o Portal do Não Retorno e a própria Árvore do Esquecimento — frequentemente reproduzem uma narrativa equivocada que retrata os corpos escravizados como resignados e inertes, quando sabemos que nunca houve passividade. 

Mesmo sob violência extrema, nossos povos resistiram. Os iorubá, jeje, bantu, kongo, angola — entre tantos outros troncos civilizatórios — não aceitaram a condição de escravizados; houve levantes a bordo, sabotagens em alto-mar, pactos de fuga ainda no porão dos navios, insurreições urbanas e rurais, e a construção persistente de quilombos em serras e florestas, como Palmares e Catucá, além dos levantes que a história oficial tentou reduzir a nota de rodapé, a exemplo da Revolta dos Malês e da Revolta dos Búzios. 

Essa história não se conta em marcos legais de concessão, mas em estratégias de guerra e sobrevivência: inteligência coletiva, redes de proteção, códigos de comunicação, domínio de território e circulação de conhecimentos práticos — das marés ao plantio, do trato das folhas às cartografias da mata —, aspectos decisivos para a manutenção da vida e para a invenção de novos modos de liberdade. A liberdade, aqui, nunca foi dádiva do senhor; foi política de insurgência cotidiana. 

Essa resistência, no entanto, não se deu isoladamente. A sobrevivência negra no território que se tornaria o Brasil se teceu também em alianças profundas com os povos originários que aqui já estavam. Foi nos caminhos, nas águas, nas matas, nas aldeias e nos interstícios da fuga que esses encontros aconteceram — encontros feitos de troca de conhecimento, de estratégias de defesa e de alianças que garantiram refúgio, orientação e continuidade.  

Foi nesse convívio forjado na urgência, na reciprocidade e no risco que se consolidou uma cosmopercepção que não é soma, mistura ou folclore, mas reconhecimento de um fundamento comum: a terra como parente, o corpo como território vivo de memória, o canto e a roda como tecnologias de cura e organização, a folha como ciência aplicada, o tempo como espiral e o ancestral como presença viva. A aliança se forja na prática e no movimento, na necessidade de viver e permanecer. Não se trata de “hibridismo” em chave museológica, mas de continuidade civilizatória que reconhece, na diferença, um método de permanência. 

É desse fundamento que hoje nomeamos Encantaria — não como categoria exótica, mas como regime de presença que mantém o mundo vivo, incorporando o sagrado ao cotidiano e recusando a amputação moderna que separou saberes, pessoas e territórios. Encantaria é tecnologia de relação e de cuidado; é método de leitura do real que escuta o vento, respeita o solo, conversa com a água, agradece a chuva, reconhece os não humanos como parte da comunidade, honra quem veio antes.  

O que a racionalidade europeia especializou em subsistemas (religioso, científico, artístico) aparece aqui como circuitos integrados: cozinhar é ciência e é rito; dançar é política do corpo e é conhecimento do tempo; rezar é ética pública e é medicina; plantar é jurisprudência do território e é linguagem da ancestralidade. Ifá, candomblé e jurema sagrada evidenciam esses circuitos — não como “crenças”, mas como sistemas complexos de produção de sentido, cura, justiça e organização social. 

Nesse mesmo horizonte, a orixalidade aprofunda a compreensão de que não existe separação entre vida, memória e sagrado. Trata-se de um sistema sofisticado de princípios éticos e filosóficos construído na diáspora como resposta à violência e ao epistemicídio. Mais do que um conjunto de crenças, ela orienta modos de convivência e reordena o mundo a partir da multiplicidade, da reciprocidade e da responsabilidade com a força vital. A orixalidade amplia a capacidade de leitura do real, oferecendo parâmetros de equilíbrio, pertencimento e justiça que dialogam com a vida concreta, não com abstrações distantes. 

Os mitos, oriquis e itã, nesse contexto, não são ornamentos simbólicos, mas arquivos de pensamento. Neles se entrelaçam ética, política, cosmologia e cuidado. Cada narrativa recoloca a pessoa na sua origem, devolvendo-lhe medida e orientação. Cada saudação reinscreve o corpo na memória coletiva e o convoca a sustentar a vida em circulação. Assim, esses repertórios funcionam como ferramentas de reorganização do presente, ensinando que justiça é prática cotidiana de equilíbrio, reparação e vínculo. 

Os terreiros, por sua vez, tornaram-se territórios de reconstrução da vida. Na diáspora, foram casas de refazimento da família que o colonialismo tentou destruir. Pai e mãe de santo tornaram-se guardiões do cuidado e da memória; irmãos e irmãs de santo tornaram-se parentes espirituais; e a casa tornou-se abrigo, escola, farmácia, arquivo e território de proteção. Ali se refez a continuidade que a violência tentou romper, expandindo a noção de família para uma ética de compromisso, afeto e responsabilidade coletiva. 

Por isso, o reencantamento do mundo não é nostalgia de um passado idealizado, mas tarefa política e ecológica do presente: recompor vínculos, desfazer hierarquias entre formas de vida, devolver espessura às relações e reinstalar a responsabilidade como princípio de convivência. Encantar, aqui, não é maquiar o desastre; é adiar o fim pela restauração dos laços que a colonialidade rompeu. Enquanto houver quem lembre, quem cuide, quem cante, quem firme o chão com o pé descalço, haverá mundo — não por milagre, mas por método: prática cotidiana de relação. 

Esse método tem um alicerce comum às tradições originárias e afrodiaspóricas: o respeito. Respeito como princípio de reciprocidade (dar e receber), de responsabilidade (responder ao chamado do vínculo) e de medida (saber o peso da ferramenta que se empunha). Respeito que se aprende com Exu na ética da resposta e da troca, com Ogum na estratégia do fazer, com Oxóssi na pedagogia da partilha e do caminho, com as mães das águas na política do acolhimento e da continuidade. Respeito como gramática mínima para uma justiça pluriversal, capaz de reconhecer múltiplos centros de mundo e múltiplas competências de verdade, desarmando a pretensão de universalidade que sustentou o epistemicídio. Onde há respeito, a vida volta a circular; onde a vida circula, o mundo adia o seu fim. 

Caminho, então, para a conclusão afirmando: Gira Encantada não é ornamento poético; é proposição de mundo.  

Asè  
 

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