#12LiberdadeCulturaSociedade

O céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu

por Helena Cunha Di Ciero

O que você faria se só te restasse um dia?

Se o mundo fosse acabar, me diz, o que você faria?

Abria a porta do hospício. Trancava a delegacia. Dinamitava o seu carro. Parava o tráfego e ria.

Domingos de Oliveira, no filme Separações, fala que a verdadeira liberdade do homem não está em seguir seus impulsos, mas, sim, suas escolhas. Porém, dificilmente essas duas coisas caminham juntas: uma vez que escolho algo, meus instintos são sufocados de alguma forma.

Escolha e limitação estão sempre entrelaçadas. Qualquer que seja a trilha escolhida, segue dentro de mim uma oportunidade que ficou para trás. Posso ser eternamente grata pelas escolhas que fiz, mas inevitavelmente fica um buraco inacabado.

O que aconteceria se fôssemos totalmente livres? Sem amarras, sem leis, sem o amanhã? De longe, essa ideia parece um sonho, mas, se aproximarmos nosso olhar um pouco mais, estaremos frente ao caos. Existe algo no limite que me protege, que me ampara, inclusive de mim mesma. Dos meus impulsos. Somos feitos de som e fúria, assim como a vida.

Em O mal estar na civilização, Freud sinaliza a importância das leis para a construção da sociedade. Estas seriam responsáveis por frear os instintos agressivos. Esse sentimento nos impulsiona adiante, para lutar. Agressividade é vida. Não se coloca um filho no mundo sem fazer força, e nem terminamos uma maratona ou aprendemos a nos defender. No entanto, também essa força pode ferir o outro, e a mim mesmo. Existe no homem uma disposição para ser bárbaro.

A cultura nos ajuda a transformar nossos instintos. Por exemplo, se estou com raiva, descarrego nos esportes, ou vejo um filme de ação, e então satisfaço meu desejo de extravasá-la.

As mesmas leis que nos aprisionam possibilitam a construção de algo. Sem paredes nada se constrói. De alguma forma, nossa sociedade pôde se desenvolver a partir de regras, que impedem que fiquemos tão ameaçados. Afinal, como sabemos, o homem é o lobo do homem.

O indivíduo civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança – disse Freud nesse mesmo texto.

Certa dose de limite nos torna menos desamparados, menos expostos. Para ser livre, devo respeitar alguns limites. Renato Russo dizia que disciplina é liberdade. Concordo. A disciplina nos ampara. Uma boa alimentação garante uma vida mais saudável. Falar tudo que penso às vezes pode machucar pessoas de que gosto. Beber excessivamente por vezes traz culpa e ressaca moral. Dirigir em alta velocidade pode causar acidentes. Estudar no tempo certo garante férias mais longas.

Na mitologia grega, Dédalo, para sair do labirinto, constrói asas para seu filho Ícaro, mas lhe diz: “Não voe muito alto, perto do sol – pois podem se derreter”. O filho, deslumbrado com a possibilidade de voar, vai muito longe, aproximando-se demasiadamente do calor, e perde a vida. Devemos fazer bom uso de nossas asas, para não nos machucarmos.

É só pensarmos nos adolescentes, em quanto o excesso de liberdade pode trazer consequências irremediáveis. Um jovem sem limite pode se tornar extremamente destrutivo. Isso porque a juventude é dotada de muito poder e onipotência. Por isso, quando jovens, flertamos muitas vezes com situações de risco, achando que somos maiores e mais poderosos que os pais ou que qualquer figura de autoridade, até mesmo maiores do que a morte.

Existe também um pensamento que liga a loucura à liberdade, a inconsequência aos atos. No entanto, não há liberdade quando se é prisioneiro de uma dor incomunicável e intransferível. O distúrbio psiquiátrico é, a meu ver, uma das mais dolorosas doenças, não compartilhada, solitária, triste. Falo isso com conhecimento de causa: durante sete anos trabalhei no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.

Marina Abramovich fez uma performance na qual deitava-se nua e colocava ao lado objetos diversos, dentre eles uma arma e uma pena. As pessoas então eram livres para utilizar-se dos objetos expostos no próprio corpo da artista. Quem a via vulnerável naquela cena por vezes utilizava-se de objetos não agressivos. Mas houve quem a machucasse. O que nos faz pensar no quanto a fragilidade do outro desperta em nós os mais diversos sentimentos. Se você me autoriza, até onde posso ir? E se você for autorizado, até onde pode ir?

Os apaixonados sofrem desse mal. Quando se entregam deliberadamente, não raro despertam no objeto amado uma relação de domínio e desprezo. Ou seja, essa entrega para o outro pode despertar nele uma série de sentimentos hostis. Deve ser por isso que, depois de certo tempo, nos entregamos com mais reserva, diferentemente do primeiro amor. É preciso que sobre um pouco de mim. Que você não me use a torto e a direito. Pois uma entrega excessiva pode ser fatal.

Porém, falar de amor inevitavelmente traz a ideia da coragem da entrega. Coisa rara. O amor sempre tem consequências. Talvez a liberdade do amor implique em aprender com essas consequências. É preciso sair de si, sem covardia, para que esse aprendizado ocorra. Sem nos aprisionarmos ao ressentimento, quando essa história acabar.