Arte da alagoana Roxinha.
#46Tempo VividoLiteraturaSociedade

Onde puseram o seu trono, senhora?

Não existe senhora preta sem história triste pra contar
(…)
Quantas vezes já parei pra refletir
que os seus passos são pesados
quase sempre esparramados
os dedos na sandália sempre gastas de unhas grossas e esmalte por tirar.
Por onde passaram esses pés?
Quanta sola já foi gasta,
quanto a pé já não andou,
quanto aperto não passaram esses pés
para que o luxo dos sapatos novos
fosse dado somente aos tantos filhos.
E quanto aos seus filhos,
qual deles ainda lhe faz a gentileza
de cortar suas unhas?
Quanto pescoço e pé de galinha comeu
fingindo que gosta
para deixar as outras partes do ensopado
a quem mais ama?
Ninguém gosta de pescoço de galinha, senhora.
Enquanto caminha no sol
por ser calor sua pele sua
e a toalha de mão arrasta naquela testa
O que pensa aquela testa?
Quanto de pensamento não esquentou aquela testa além do sol?
Esse suor que toca salgado a raiz do cabelo na testa.
Quem ainda te alisa o cabelo?
Quem ainda te obriga a fazer isso?
Quanta ordem esse cabelo já recebeu?
Quanto tempo de sua vida ali em frente ao espelho infeliz com ele
Onde deita essa cabeça, senhora?
E quando deita, qual teto enxerga até adormecer?
O que sonhou essa cabeça?
Quanta inteligência nessa cabeça
A do cozinhar, a do costurar, a do resolver tudo por conta própria
foi substituída pela vergonha do não saber como ensinam nas escolas
Do não saber falar.
Quanta timidez senhora, por não saber falar.
Quanta vergonha sob essa testa que a toalha de mão arrasta foi obrigada a passar.
Eu vejo uma dor que é suada e seca,
Como se mesmo chorando, essa senhora preta nunca tivesse sentido pena de si do jeito que a gente chora.
Quanta pena de mim eu já senti
por perder um ônibus na minha pressa,
Quanta pena de si ela deixou de ter
por não ter podido mesmo se dar esse luxo.
Quanto choro silencioso e seco já chorou nesses seus setenta,
Sessenta, sessenta e oito anos.
Quanta simplicidade contemplou como se ouro fosse
Quanta alegria te deu a laje pronta,
a festa que a filha foi de sandália nova,
porque a sua já tão gasta ainda aguenta esse passo firme.
Em direção a quem caminham esses pés?
Qual o seu desejo pra hoje, senhora?
É que seus filhos sejam felizes?
É que tenha lugar na condução?
Qual seu lugar, senhora, explica.
Porque me entristece a injustiça dos que não te enxergam aqui passando majestosa.
Onde puseram seu trono, senhora?
E de repente, já terminei aquela rua e aquela senhora já caminhou
pra não sei onde
E aquela energia pendente como rastro no caminho
me faz indagar coisas como:
Quem cortará minhas unhas quando eu for senhora?
Quanto ainda caminharei até encontrar meu trono?

— Luciene Nascimento, em Tudo nela é de se amar.

Na primeira vez que li esse poema, ele me rasgou. Me partiu ao meio. Na segunda também. E na terceira. E na quarta, na quinta, em todas. Porque ele tem cheiro, tem gosto e tem rosto. O da minha avó. O da minha mãe. O de tantas nós.

Eu sou neta de duas mulheres negras. Maria Teixeira de Carvalho e Maria Aparecida Leite Nunes. A primeira nasceu em Campos dos Goytacazes, município do interior do estado do Rio de Janeiro. A segunda, nasceu na Comunidade Quilombola Sítio dos Crioulos, situado na zona rural da cidade de Jerônimo Monteiro, região sul do Espírito Santo. Ambas migraram para a cidade do Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida. As similaridades entre elas não param por aí. As duas começaram a trabalhar muito cedo em “casas de família”, tomando conta de outras crianças enquanto eram crianças também, limpando a sujeira que os mais abastados não queriam limpar. Essas duas mulheres negras se encontraram no Morro do Juramento, zona norte do Rio de Janeiro, onde meus pais se conheceram e constituíram a família que me origina.

No poema Vozes-mulheres, Conceição Evaristo escreve:

A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A linha narrativa desenhada pela autora retrata o caminho percorrido por muitas famílias negras. Em meio a violações, processos de escravidão e racismo contemporâneo, tentamos construir possibilidades outras de existir. Quando leio Conceição e Luciene, me recordo de uma conversa que tive com Dona Miguelina, minha parente do coração. Ela nasceu em Maceió, capital do estado de Alagoas. Veio para o Rio, como minhas duas avós. Ainda muito jovem, foi empregada doméstica. Alguns dos trabalhos desempenhados não eram remunerados financeiramente. A casa, a alimentação e por vezes um sapato ou vestidinho novos eram “a paga” pelos serviços prestados. Essa conversa mudou algo dentro de mim. Dona Miguelina não tinha dimensão da exploração que tinha vivido. Também não tinha o ódio que me surgiu ali, naquele momento, ao ouvir que a família era “até carinhosa”. Eu não conheci essa família, mas, de longe, eu a odiei, devo confessar. Não me senti digna de falar para uma senhora de mais de 70 anos que algo que ela guarda como memória afetiva era exploração. Não houve militância, leitura ou acúmulo acadêmico que desse conta do que aconteceu ali naquele quarto-sala na favela Nova Holanda. Mas desde então me pus a pensar nisso.

De tempos em tempos, emergem nos veículos de comunicação e redes sociais casos de situações de trabalho análogo à escravidão, nas quais geralmente senhoras negras foram as vítimas. Isso falando dos casos que ganham visibilidade. Sabemos que há milhares de histórias como essas soterradas. Um desses casos veio à tona em abril de 2022 e aconteceu em Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador. Madalena Santiago da Silva tinha oito anos quando começou a trabalhar como empregada doméstica na casa de uma família de classe média alta baiana. Durante todo esse tempo, Madalena não recebeu salário. Em muitos momentos, sofreu violências e maus tratos, sem contar o racismo. Além disso, a filha dos patrões fez empréstimos no nome dela e ficou com R$ 20 mil da aposentadoria da empregada doméstica. Esse caso evidencia a falta de fiscalização eficaz por parte das autoridades, bem como a exploração impiedosa e o desrespeito aos direitos humanos mais básicos. Após ser resgatada, Madalena foi entrevistada por Adriana Oliveira, repórter da TV Bahia. Durante a conversa, a jornalista pegou na mão de Madalena, que disse: “Fico com receio de pegar na sua mão branca”. Adriana insistiu no toque, afirmando que não havia diferença entre as duas.

Quando tinha 61 anos, Leda Lúcia dos Santos foi resgatada de uma casa onde trabalhava desde os nove anos, no bairro Patamares, também em Salvador, sem receber pagamento. A idosa, que já havia tentado fugir diversas vezes — sendo ameaçada em todas — não sabia que tinha o direito de ganhar dinheiro pelos serviços prestados. Após o resgate, Leda passou a receber um salário mínimo e vive em um abrigo municipal.

Na cidade de Fortaleza, em maio de 2023, uma senhora de 78 anos, de nome não divulgada, foi encontrada em situação de trabalho análogo à escravidão. Ela prestava serviços há mais de 40 anos para a mesma família. A “remuneração” era casa e comida. Ela não recebia salário. Além disso, a senhora não tinha folgas ou férias. O trabalho era de domingo a domingo, por 40 anos a fio.

De forma geral, a “terceira idade” ou velhice costuma ser o momento em que nós, mais novos, vislumbramos o tão sonhado descanso após anos de trabalho. É quando esperamos ter o reconhecimento por nossas contribuições para a sociedade e sonhamos com o gozo pleno de direitos, um pouco menos amarrados pelas cordas da produção capitalista. Mas, falando de pessoas negras, muitas vezes o tão sonhado descanso não chega em vida.

Os três casos citados expõem uma ferida aberta nas sociedades ocidentais: a falta de cuidado com os mais velhos, especialmente os negros, indígenas e empobrecidos. As condições de trabalho enfrentadas por essas senhoras, bem como as encontradas pelas minhas avós e por Dona Miguelina são herança de uma mentalidade colonial que vê em mulheres negras de mais idade o lugar da abdicação, do cuidado e, por que não, da exploração. Os quartos de empregada são senzalas pintadas de modernidade.

Assim, é importante nos questionarmos: quem tem direito a envelhecer? Conforme pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizada em 2019, em Santa Catarina, um dos estados brasileiros com uma das maiores rendas médias per capita, a expectativa de vida média era de 79,9 anos. Já no Maranhão, o estado com a menor renda média do país, a expectativa de vida média naquele ano foi de 71,4 anos. É relevante ainda a informação levantada no Relatório Anual das Desigualdades Raciais do Núcleo de Estudos de População, elaborado pela Universidade Estadual de Campinas (Nepo/Unicamp), de que os brancos vivem seis anos a mais que os negros, em média.

A maior parte da população brasileira é composta por pessoas negras (pretas e pardas). Porém, esses grupos enfrentam maiores desafios em relação ao acesso à educação, à saúde e ao saneamento básico e estão mais expostos a condições de trabalho degradantes, o que resulta em limitações no acesso a direitos básicos, como salário-mínimo e aposentadoria. Além disso, pessoas negras sofrem com níveis mais elevados de violência e são as principais vítimas de processos de genocídio, especialmente os homens negros.

Quando li o poema de Luciene Nascimento, além de sentir o cheiro da minha avó, me lembrei de uma pergunta que me perturbava a cabeça quando era criança e assistia ao Sítio do Picapau Amarelo na TV: porque a marca da farinha de trigo se chama Dona Benta, se quem faz as receitas é a Tia Anastácia? Eu mesma espantava a pergunta de minha mente, pois achava que era bobagem. Não é.

É histórico o processo de roubo de histórias de nossas mais velhas, negras. É histórico o roubo de suas vidas. Tia Nastácia é frequentemente retratada como cozinheira da família, caracterizada por sua pele escura e por seu corpo gordo, sendo muitas vezes rotulada como a “negra de estimação”. Sua posição, marcada pela subordinação e pelo serviço à família da fazenda, ilustra o estereótipo da mulher negra que dedica sua vida a uma família branca, conhecida como “mãe preta”. Esse estereótipo é recorrente em produções cinematográficas, novelas e séries. Ele contribui para um imaginário que faz parecer natural explorar a mão de obra de mulheres negras por anos e não lhes pagar um único centavo.

Há um provérbio africano que diz que, quando um velho morre, é uma biblioteca que queima. Isso porque são os mais velhos e as mais velhas que, por seu tempo acumulado e vivido nesta terra, guardam uma maior quantidade de vivências e saberes. Afinal, percorreram muitos caminhos que podem ajudar quem está chegando agora na estrada da vida. Porém, para que essas bibliotecas possam compartilhar seus conhecimentos e desfrutar da leveza do ser ainda precisamos avançar enquanto sociedade e quebrar o paradigma de vivermos num tempo em que muitos querem envelhecer, mas poucos respeitam aqueles que já chegaram lá.