Por mais que vivamos numa espécie de ditadura de “o passado nunca mais” o que, sim, tem sua beleza, especialmente quando na voz de Belchior , a verdade é que nem sempre devemos ignorar ou apagar as marcas deixadas pelo tempo. Lembrar é, numa só, um ato de coragem e afeto: coragem para reconhecer o valor e o poder de transformação que as lembranças têm; e afeto para enaltecer personagens e cenários, a ponto de, com eles, conseguir aprender. Em linhas gerais, é nisso que acredita o belga Axel Vervoordt, conceituado designer de interiores e criterioso colecionador de arte.

Wabi-Sabi é uma antiga filosofia japonesa que tem a imperfeição como paradigma do que é belo. Por “imperfeição”, entende-se: assimetrias, irregularidades, acanhamento, um punhado de características sucateadas nas sociedades modernas. “Wabi” vem da simplicidade, da elegância e do rústico, enquanto “Sabi” nos leva à galhardia da idade, do desgaste e das rugas do tempo. Isto é, o Wabi-Sabi enxerga a beleza de tudo “falhas” e rachaduras inclusas.

Como alguém que está à cata desses encantos que de algum modo se escondem mesmo estando na frente dos nossos olhos, passando despercebidos e residindo nos detalhes, Axel Vervoordt vive e respira o Wabi-Sabi. É da sensibilidade atinada, portanto, que germina o seu maior talento: daqui do presente, notar e dar nova vida à graciosidade do passado.

Se o século passado foi de produção, consumo e descarte, a história agora é outra. A sensação atual predominante, literal e metafórica, é a de que tudo está se esvaindo – nossos recursos naturais, nossos lugares para despejar lixo, nossas relações pessoais. O século XXI, se tomado como um ensejo de mudança, caracteriza-se pela necessidade de recuperação. Com o resgate, o antigo torna-se atual novamente, e a verdade, como acredita Vervoordt, pode estar contida no paradoxo e na ambiguidade. Não à toa, os seus designs investigam os conceitos de tempo-espaço e a natureza do ser, duas instâncias que latejam contradições.

Para atribuir coesão e harmonia à tal complexidade, a humildade é imprescindível. Pensemos em alguém cuja percepção é sempre respeitosa e que não faz questão de se evidenciar no que produz, preferindo escutar os sussurros de um espaço para então compreender como amplificá-los ao máximo e transformá-los em uma voz própria. Com essa abordagem orgânica, até os elementos da natureza se fundem aos ambientes, combinando a austeridade do design moderno com uma aceitação humana dos efeitos do tempo.

“A simplicidade é a sofisticação máxima.”

Vervoordt, o designer, e Vervoordt, o colecionador, se amalgamam. O olhar apurado para identificar essências que emanam complementaridade é o que faz com que sua coleção priorize peças com espírito, descartando superficialidades e modismos. No fim, é a lógica dos seus designs aplicada ao próprio inventário: coleciona não para possuir, mas para fornecer um pedestal digno dos artigos em questão. Um desses pedestais é sua casa, onde a justaposição de obras e objetos formam um diálogo precioso. O designer-colecionador, que, aliás, projetou os interiores das residências de diversas celebridades de Kanye West a Calvin Klein ,passa seus dias morando no campo em um castelo do século XII e, assim, a interlocução de épocas faz parte das minúcias do seu cotidiano. 

“Gosto de ser fascinado por algo antigo que parece muito contemporâneo e algo contemporâneo que parece muito antigo.” 

Falando em contemporâneo e antigo, agora jogamos o holofote sobre o projeto Kanaal, um complexo cultural e residencial em Antuérpia,charmosacidade belga. Originalmente construído em 1857, Kanaal funcionava como uma destilaria. Em 2017, porém, os armazéns industriais de tijolos e os silos de grãos de concreto viraram apartamentos de alto padrão e um hub de escritórios moderníssimo. 

A antiga destilaria foi restaurada e complementada com uma ou outra adição, de modo que os períodos se encontram de forma natural. Respeitando a história e dando um abraço caloroso nas características originais do edifício, todo o terreno recebeu uma nova perspectiva para o futuro. É assim que Vervoordt, já há algum tempo, é referência máxima.

Por que deveriam arranhões na madeira desvalorizar uma mobília? Abraçar imperfeições é uma maneira criativa de se reinventar. A filosofia por trás do Wabi-Sabi talvez não vá de encontro com os fundamentos de “o passado nunca mais”, nem mesmo se cantado por Belchior. Mas, partindo da sabedoria japonesa e de sua paixão pela contradição harmoniosa, Axel Vervoordt sabe que é no passado que está o futuro. E, como diria Belchior ajudado pelo coro do designer, “precisamos todos rejuvenescer”