Pode-se dizer que o nome de Diambe da Silva começou a circular no circuito das artes visuais recentemente. Seja por conta dos temas sobre os quais se debruça, seja pela forma de contestação e reflexão que sua produção impõe, em apenas cinco anos um percurso que começou através do cinema se desdobrou em uma trajetória artística de importante repercussão. Os novos caminhos para além da tela – coreografias, esculturas, pinturas, desenhos – levaram Diambe a expor em coletivas no MASP e no Instituto Moreira Salles e realizar uma primeira exposição individual no Centro Cultural São Paulo. Tudo isso acabou por lhe render a indicação ao Prêmio PIPA 2022, o maior prêmio de arte contemporânea do Brasil.
Pessoa negra, crioula, não-binária e soropositiva, como se afirma, nascida no Engenho Novo e criada nos entornos de Madureira, nos subúrbios do Rio de Janeiro, Diambe não tem medo de mostrar a cara e lutar pelo espaço, pela voz e pelos direitos. Canaliza sua energia para produzir obras onde não há, no seu entender, uma diferenciação entre arte e política, nem entre abstração e figuração, forjando um espaço para desafiar e contestar cânones, propondo caminhos para uma discussão e revisão da história e da própria arte.
“Eu sou uma pessoa política todos os dias da minha vida, até quando estou fazendo voto de silêncio dentro do ateliê. É lamentável as pessoas separarem arte e política, porque algumas pessoas ficam presas ao lado ‘político’ da coisa. Essas em especial são colocadas em uma gaveta de onde não conseguem sair quando desejam”, afirma com convicção.
A artista defende que o mais importante é ser livre para tratar os desafios que lhe são urgentes. “Hoje em dia as pessoas esperam que artistas negras façam pintura figurativa, então eu estou fazendo algo inesperado na minha geração! Que bom! Eu sou uma quebra de expectativa, pois nem somente pintura figurativa é política. Acredito na arte como uma forma de metamorfose das matérias postas. Eu realmente preciso encostar na matéria, é meu jeito de segurar a barra da nossa sociedade, ou enlouqueço. Este é o potencial estético da arte.”
Diambe nasceu em 1993. Como muitas pessoas da sua geração, trabalha com diversos meios, mídias e materiais. Seus assuntos nascem do dia a dia, e a inspiração vem de qualquer matéria viva. “Os temas, assim como os materiais utilizados, vêm da vida cotidiana. Acredito que isso é atemporal para mim. Estou falando de matérias vivas e dialogando com elas para fazer esculturas e coreografias, porque meus trabalhos têm a intenção de chegar ao maior público possível”, conta.
Devolta (2019-2021) é provavelmente seu trabalho mais conhecido até então. Nele, Diambe desenha um círculo com roupas em volta de monumentos públicos e ateia fogo, criando uma cortina de fumaça em volta de estátuas de personagens históricas como Dom João VI e Princesa Isabel. Essa ação é uma de suas coreografias. Não é apenas uma performance no sentido artístico, mas uma construção coletiva, uma ação que toma forma a partir de uma investigação específica, falar sobre os monumentos e figuras que ocupam esses lugares de destaque nas praças e que narram uma versão única da história. “Coreografia é um jeito de eu criar situações no campo das artes sem que eu precise usar a palavra performance. Eu não estou fazendo uma performance porque não sou somente eu que estou desempenhando algo, meus movimentos geralmente são coletivos e participativos, muitas coisas agem sem saber nessa composição.”, explica.
Entre setembro e outubro, a artista apresentou a exposição Jardim Novas Mucosas, na Quadra Galeria, em São Paulo. A mostra, com curadoria de Catarina Duncan, reuniu esculturas em bronze, pinturas a óleo e têmpera e um filme que leva o nome da exposição, parte de seu conjunto mais recente de trabalhos. Essas obras apresentam outro coreografar, mas seguem o compasso particular de Diambe.
A noção de movimento, conforme conta, é algo central em sua poética. “Quando eu era criança, ia ao circo e ficava observando as acrobatas, tentava não esquecer o comportamento das coisas que se movem. E, nesse sentido, é o movimento que me atrai”. E é justamente do movimento que surge a coreografia, seja na rua ou no recanto do ateliê, moldando as peças em bronze ou pintando telas abstratas.
Logo depois de ter iniciado as coreografias nas ruas, Diambe começou a elaborar esculturas vivas, feitas com raízes alimentares crioulas. “Em algum momento, as minhas crenças me levaram a perceber que esse material perene, vivo, precisa ter monumentalidade na sua beleza, que já atravessa tempos e espaços. A metamorfose para o metal me levou a novos arranjos mais complexos”, relata. É desse percurso que nascem as esculturas e pinturas que fazem parte do conjunto Novas mucosas.
Com suas formas e criaturas, Diambe deseja transformar o papel que as esculturas desempenham na história. Colocando suas obras em relação à escultura tradicional, a artista afirma que suas coreografias e esculturas são transformadoras porque são prazerosas, baseadas em um comportamento vivo. “Já vi pessoas de classes sociais, religiões e formações distintas sendo arrebatadas pela minha obra. É o mais revigorante amor do público. As Novas mucosas tomam formas de comidas que alimentam espiritualmente, além de serem combustível de saúde no mundo”. Assim, a artista busca contrapor um mundo vivo – de formas livres e cores variadas, de organicidade, de relação com o corpo e com o alimento, de diversidade e pluralidade – a um mundo estagnado numa história que ainda merece muitas revisões; um mundo comandado pelo homem branco a um mundo onde seres e natureza são uma coisa só.
Em suas pinturas, formas semelhantes às esculturas ocupam o espaço da tela. O mesmo movimento orgânico, com formas disformes, seres e criaturas formam um jardim que não é, conforme afirma Duncan, possível de ser controlado pelo homem, pois tem vida própria. A curadora escreve: “Na ecologia dos saberes, cruzam-se conhecimentos e ignorâncias. Ela nos convida a aprender outros conhecimentos sem esquecer os próprios para sonharmos com o interconhecimento. Existe, no mundo ocidental, a pretensão de se compreender um jardim como algo totalmente controlado pelo humano. Ignora-se o fato de que minerais, insetos e fungos são também agenciadores de jardins”.
Há, ainda, em Jardim Novas Mucosas, uma referência à ficção científica de Octavia Butler (1947-2006), autora estadunidense que Diambe começou a ler durante a pandemia, ao mesmo tempo em que se dedicava à produção das esculturas vivas. A série Xenogênese – uma narrativa em três volumes, sobre uma humana que despertou após 250 anos de animação suspensa e descobre que a Terra foi dominada por seres de outro planeta – serviu para criar imagens. Diambe afirma que seu processo criativo é dividido entre fazer e pensar: “Preciso de tempo de pesquisa, passo parte do tempo no ateliê e outra parte eu passo lendo, estudos culturais, ficções, política ou estudos vivos. Ficando à toa também aprendo muito, é verdade, e as obras nascem neste caldo”.
Para Diambe, o que é essencial em seu trabalho é a forma como ele se transforma. “Para mim, metabolismo e metamorfose são o trunfo. Tudo comunica, mas nem tudo respira de jeito vivo, a gente tem que ser humilde frente a isso. Eu uso materiais que já foram muito usados, mas faço isso de jeito autêntico porque atribuo vida aos comportamentos da matéria”, pontua.
Para o próximo ano, Diambe prepara-se para sua próxima residência artística que se desdobrará entre algumas cidades da Suíça e outras do Benin e Nigéria. “O propósito desse deslocamento é encontrar o espólio das esculturas milenares que são de origem africanas e que estão em museus etnográficos na Europa. Como parte disso, minha vocação alimentar me fez pesquisar a antropofagia de 1922 [Semana de Arte Moderna, de 1922], uma filosofia brasileira cujo princípio é nos alimentarmos das influências estrangeiras e digerir isso, misturando às nossas referências internas. Minhas referências são crioulas, misturadas”, conclui.