Utopia, por definição, trata de um mundo imaginário ou hipotético. Onde mais, que não no maravilhoso campo da imaginação e das hipóteses, viveríamos em uma conjuntura sociopolítica ideal? Venhamos e convenhamos: uma sociedade que se caracteriza pela perfeição elevada a todos os âmbitos, nivela classes sociais e proporciona a todos felicidade, igualdade e realização, não é coisa deste mundo. O termo “utopia” foi cunhado pelo escritor Thomas More (1478 – 1535), que também era político, num livro de 1516, que retrata uma sociedade idílica localizada em uma ilha imaginária. Ao representar a perfeição, jogou luz nas ranhuras da vida real. No começo do século XVI, sem as catástrofes ambientais e as ameaças tecnológicas esmurrando as portas mas com um sem-fim de conflitos políticos já fazendo baderna dentro do cômodo, era sabido que a plenitude jamais seria alcançada por um corpo social.
A humanidade e as suas formas de organização já eram tidas como eternos trabalhos em progresso.
Na opinião do pensador francês Gilles Lipovetsky, as grandes utopias coletivas caducaram. Elas perderam a guerra para as utopias de cunho individualista — tema de sua obra-prima, A era do vazio, de 1983 — ou, então, para as utopias que não são tocadas pela esperança, mas sim pelo medo. É o caso das reivindicações feitas pelos ambientalistas: se não mudarmos logo, o mundo há de explodir. Simples assim, sem meio-termo. Desse medo para lá de compreensível, sentimos a necessidade de buscar soluções para evitar o fim de tudo, correndo atrás de um objetivo que estamos longe de alcançar. Há algumas décadas, fala-se à exaustão sobre o assunto, e com o devido tom alarmista, mas, desde que ele ganhou esse lugar cativo nos debates ao redor do mundo e virou pauta imprescindível para qualquer discurso político (ainda que, por ventura, esse discurso vá contra medidas ambientais), dá para dizer de boca cheia que algo realmente mudou? As previsões do futuro seguem aterradoras, talvez mais amedrontadoras que nunca, apontando mais para uma distopia digna de sci-fi.
Seria esse tal mundo sustentável, sobrevivente da invasiva conduta humana, a grande utopia da modernidade?
Ao contrário do que aparenta num primeiro momento, a fala de Lipovetsky não é um ataque contra ambientalistas. O medo que os discursos sobre mudanças climáticas geram são provenientes de ciência. Não é condenável, portanto, adotar discursos pessimistas e insurgir nas pessoas um senso de responsabilidade emergencial para com o amanhã. O que o pensador francês sugere é que, na cambiante sociedade atual, em que a esperança sistemática soa cada vez mais como ingenuidade, não há muito espaço para se ter fé nas instituições. Numa era em que as pessoas fazem questão de evidenciar as inúmeras problemáticas estruturais que temos (sejam sociais, políticas e/ou culturais), não parece inteligente sonhar com grandes transformações que dizimarão o mal e farão florescer um planeta equânime. A ordem do dia pende mais para a metamorfose individual, uma versão hiperconectada e repaginada, bem menos gandhiana, de “seja a mudança que quer ver no mundo”.
A não ser, claro, que o medo esteja envolvido.
A ânsia por mudar o mundo jamais sairá de voga, isso é verdade. O que passa por um processo de remodelação, no entanto, é a maneira com que isso é sonhado, além dos porquês pelos quais esse impulso perdura na essência humana. Os projetos pessoais também têm forte poder de transformação e podem, sim, ser vistos como versões utópicas de nós mesmos, como impulsos para que melhoremos e façamos a nossa parte. É uma espécie de individualismo conveniente e que, no final das contas, é mais “pé-no-chão”. Quando isso se soma ao medo real proporcionado pela crise climática, a última grande utopia se apresenta como a única resolução (im)possível: a partir do conjunto de ações e transformações individuais, chega-se, quem sabe, à solução que salvará o planeta do proclamado colapso ambiental. Reciclagem, vegetarianismo, veganismo, conscientização sobre o desmatamento desenfreado, discursos inflamados nas redes sociais, tudo parte de uma lógica essencialmente individualista. Se isso tem o condão ou não de realmente proporcionar as mudanças estruturais necessárias, só o tempo dirá.
Apesar dos indícios de que as coisas não vão bem, não dá para dizer que nada mudou. Mas, como os passos são pequenos (por vezes, menores do que as passadas céleres rumo à destruição), toda vez que uma nova marca é atingida, mais demandas surgem, nos afastando desse mundo saudável e verde, em cuja natureza é tratada como se deve. Fazemos pelo bem próprio apesar de ver pouco impacto prático no coletivo, com um grande medo do que pode acontecer agora e no futuro, mas com um medo maior ainda de nos perguntar: neste ponto, depois de anos de usar e abusar dos recursos naturais, será que dá para chegar lá?
“Diz-se o tempo todo que se as coisas continuarem como estão o planeta vai explodir. As utopias clássicas falavam de esperança. Temos, porém, muitas pequenas utopias à la carte, pessoais, particulares, singulares, sonhos de cada um: combater a miséria, preservar o patrimônio histórico, proteger a infância, melhorar o mundo, diminuir o sofrimento, ajudar os desfavorecidos, enfim. As utopias coletivas e sistemáticas é que desapareceram. Nada disso elimina o sonho de fazer coisas, de empreender, de reformar, de criar. As grandes utopias ideológicas, que pretendiam mudar o mundo como totalidade, cederam lugar às pequenas utopias realistas num mundo flexível e mutante.”
— Gilles Lipovetsky
Há vinte anos, o filósofo francês Jean Baudrillard (1929 – 2007) afirmava que os desafios que a humanidade enfrentaria no início do século XXI seriam de importância vital, implicando em nada menos que a responsabilidade de garantir as condições de vida das gerações futuras. Deparamo-nos, todos os dias, com notícias sobre o último desastre ecológico, sobre os cataclismos políticos cotidiana, crises econômicas, escassez de recursos retornáveis e tantas outras notícias que pesam no nosso peito e formam nuvens sobre nossas cabeças. Existem três atitudes principais, e talvez complementares, às quais podemos recorrer como mecanismos de autodefesa frente à hostilidade de nossos tempos: o cinismo, o hedonismo e o ativismo (se é que esse é o termo mais adequado). Um: se o mundo está condenado por uma catástrofe iminente, por que eu deveria me preocupar com algo? Dois: ora, se o mundo está condenado por uma catástrofe iminente, o melhor a fazer é aproveitar a vida enquanto podemos. E três: se o mundo está condenado por uma catástrofe iminente, vou fazer o que posso para ajudar.
Em Reality of the Virtual, o filósofo esloveno Slavoj Žižek desenvolve a ideia de que, perante o gozo imperativo que constitui o nosso atual ecossistema social, devemos aprender a sonhar com utopias e a viver nelas ativamente. A psicanálise moderna seria “o espaço onde é permitido não se divertir”. Isto é, uma hora completa em que você não precisa tirar fotos, postar, comprar e dar opiniões. Uma raridade no mundo de hoje. É a partir dela, ou de qualquer que seja o método de escape, que se cria o impulso autêntico para esse cinismo, o hedonismo e o ativismo. Sem interferência externa, como uma postura nascida de um contexto pessoal.
A crítica de Žižek, claro, tem a ver com o “regulamento” total do capitalismo que nos diz “divirta-se” com o tapa de uma mão e “mas não coma demais, não fume, cuide da saúde física” com a outra. A sociedade capitalista não apenas nos manda desfrutar, mas dita os percursos adequados para fazê-lo. São percursos regulamentados que fazem parte da jaula dourada do nosso presente. Se partirmos da visão de Gilles Lipovetsky e reconhecermos que não existem mais utopias coletivas, muito do que nos é vendido perde força. Tudo que é demandado de nós enquanto indivíduos responde a uma demanda mercadológica, os valores e o zeitgeist de determinados tempos são ideais em constante metamorfose. Algo que vai de acordo com a moda da vez. A tarefa do pensamento atual é se opor ao imperativo intrínseco do capitalismo e das estruturas de poder, assumir que o estado atual das coisas não pode seguir esse caminho para sempre.
A principal tarefa hoje é reinventar a Utopia. Claro que não é a grande utopia antiquada de imaginar mundos irreais que sabemos de antemão que nunca serão realizados, essa é a utopia clássica. Devemos ousar realizar o impossível, devemos redescobrir como, não imaginar, mas realizar utopias. A questão não é planejar utopias; o objetivo é praticá-los. E acho que não é uma questão de ‘devemos fazer ou devemos persistir na ordem existente’? É uma questão muito mais radical, uma questão de sobrevivência: o futuro será utópico ou não haverá futuro.”
— Slavoj Žižek
Ou seja, uma utopia que não é teoricamente acabada antes de ser criada: uma utopia da prática individual e cotidiana.
Para que se criem novas utopias coletivas, hoje praticamente em extinção, a utopia do ambientalismo deve ser uma ambição de todos nós, seja ela impossível ou não. Muito embora o conceito de utopia seja frequentemente usado como uma ideia aspiracional, ela carrega em si a crueldade, e a força, daquilo que não vai se concretizar. Parece desarrazoado, mas, na verdade, a impossibilidade é a força motriz da coisa toda.
Se a cada dez passos que damos em direção às utopias elas cuidam de se distanciar dez passos mais, as utopias tem um propósito claro: fazer andar para frente.