Estado para um enriquecimento interior (1976), de Helena Almeida. A artista portuguesa está em exposição no IMS de São Paulo. Foto da Coleção Helga de Alvear, de Madri.

Viajando de férias, minha filha recebe uma mensagem da sua melhor amiga, coincidentemente chamada Helena. Fica contente com a lembrança e me diz: “Mamãe, quando eu voltar, quero brincar na casa da Helena. Ela é minha saudade mais favorita.” 

Fiquei um tempo pensando. O lugar da saudade dentro da gente é sempre de honra. Para ser digno de saudade, algo precisa ter sido intensamente costurado na nossa alma, com fios do metal mais precioso que existe — que nem o tempo ou a distância são capazes de apagar.

Tenho muitas saudades favoritas que me fazem companhia. São memórias nas quais passeio com frequência e me alimento em dias sombrios. Algumas pessoas me dizem que minha memória é boa. Eu concordo, até porque preciso muito dela no meu ofício para ajudar pessoas a entender que ter uma saudade favorita não é ser esburacado, mas muito pelo contrário. Saudades favoritas podem ser lugares para sorrirmos secretamente. Isso porque são exclusivos, propriedade privada. Algumas saudades favoritas são pessoas, por vezes uma cena, uma viagem, um livro, um filme. Gosto da cena do filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, na qual se tenta apagar a ex-namorada da mente. Eis, então, que o personagem se reencontra com uma lembrança de ambos fazendo anjos na neve, deitados, mexendo os braços e as pernas. Gorros coloridos, o branco da neve, seus corpos fazendo formato de “x”. Ao visitar essa cena, antes de seu apagamento, insiste: “Posso ficar só com essa cena da minha namorada? Por favor: Let me just keep this memory“.

Uma vez, num passeio turístico pela Itália, o navio parou e os passageiros podiam pular no mar. Todos do barco se trocaram e se jogaram. Já eu, desavisada, não tinha maiô nem toalha. Porém decidi mesmo assim mergulhar de roupa e tudo. Era verão. Meus pais, num ato impulsivo (coisa rara lá em casa), pularam atrás de mim, também vestidos. Éramos nós três, o mar azul de Capri e o sol que batia na água que a deixava estrelada. Quando retornamos a bordo, rimos de nosso trio encharcado. Era uma travessura em conjunto. Eu tinha 25 anos e me casaria em seguida. Era uma despedida do que éramos nós três, daquela família de onde eu vinha. Essa é, definitivamente, uma das minhas saudades favoritas. Foi a primeira lembrança que pulou da gaveta da memória quando pousei no título desse texto. Minha mãe foi embora há um mês e meu pai há 11 anos. Fiquei sozinha a bordo. O difícil é não poder contar com ninguém para reviver esse momento. Eu fiquei para contar essa história. Sobrei como testemunha de que um dia não fomos só saudade. Um dia saímos juntos de férias e pulamos nessa água, éramos três. Coloquei na parede do meu consultório um quadro com esse mar, feito com um cartão postal por uma amiga artista: a água azulada, as pedras, os barcos branquinhos cheios de turistas. Eu não tenho foto dessa cena que vivi, mas tenho o quadro para recordar dessa memória quando me sentir sozinha. De vez em quando eu mergulho nessa cena, nós três de mãos dadas no mar de água gelada, refrescante, rindo como crianças da nossa inconsequência.

É que nossas memórias são como roupas penduradas no varal, no fundo da nossa mente. Às vezes, passeando por elas encontramos conforto. Uma lembrança pode nos vestir como uma roupa quentinha que o sol acabou de secar. Ou, talvez, como um casaco felpudo antigo que pule de uma gaveta num dia de frio. Foi, porém, a minha filha quem colocou a etiqueta nessa gaveta com um nome pertinente. Os meus filhos são o meu presente favorito, assim como o meu futuro azulado, tal como o mar de Capri.

Quem imaginaria que as vitrolas voltariam a cantar alto com o imponente ressurgimento dos LPs? Quem poderia, então, imaginar que as livrarias megastores perderiam quase todo o seu mega espaço e, após de anos de preterimento, livrarias de bairro veriam mais uma vez a luz do sol? Em movimentos cíclicos, muitas vezes contra intuitivos, a modernidade tecnológica pode agir de maneira curiosa. O fenômeno, talvez, se dê pelo fato de estarmos diante de trocas de marcha rápidas e categóricas, já que elas despertam, naturalmente — e, ao mesmo tempo, paradoxalmente —, um sentimento fortíssimo de nostalgia. Não se negam os avanços, mas também não se refreiam as comichões que nos fazem querer resgatar épocas em que os reinados eram mais duradouros e os pés pareciam se fincar em solos mais estáveis. 

Falando em marchas e frenagens, sabe quem também está voltando com todo o esplendor do seu apogeu? O Expresso do Oriente.

Graças a novos investimentos em cima de linhas ferroviárias de alta velocidade, algo que resultou em mais conexões e serviços aprimorados, nos últimos anos, para surpresa de alguns, os trens tornaram-se o transporte de escolha de um número crescente de viajantes, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Entre os projetos que surgiram para atender a demanda, temos o glorioso relançamento do Expresso do Oriente — não como a linha em atividade Venice-Simplon-Orient-Express, que o homenageia, mas como, de fato, o original. O trem que mudou para sempre as viagens de luxo e virou figura carimbada na cultura pop está sendo ressuscitado pela empresa Accor.

Fora de operação desde 1977, depois de décadas o ícone ferroviário se prepara para reviver suas viagens opulentas, embora ainda sem confirmar itinerários. O trem reformado, como tantas outras manifestações oriundas da nostalgia que se transforma em oportunidade mercadológica, não medirá esforços para misturar épocas, fazendo com que o clima de mais de 100 anos atrás encontre os confortos contemporâneos. Fazendo jus à sua própria mitologia, os 17 vagões, que costumavam formar o que era conhecido como Nostalgie-Istanbul Orient-Express, tiveram uma redescoberta digna de cinema.

Arthur Mettetal, historiador com foco em história econômica e patrimônio industrial, em 2015 começou uma busca para inventariar o que restava do Expresso do Oriente para a SNCF, serviço nacional de trens da França. Durante sua pesquisa, encontrou um vídeo de um trem que se assemelhava ao Nostalgie-Istambul postado anonimamente no YouTube. Depois de analisá-lo minuciosamente à procura de pistas sobre onde afinal ele poderia estar, utilizando-se de uma combinação de Google Maps e outros recursos de 3D, localizou-o na fronteira entre a Bielorrússia e a Polônia.

Mettetal, então, viajou para Varsóvia, com a esperança de encontrar os lendários vagões de uma vez por todas. No fim de sua jornada, que contou também com a presença do vice-presidente do Expresso do Oriente, Guillaume de Saint Lager, descobriu que os vagões, parados naquele ponto ermo há cerca de 10 anos, estavam surpreendentemente bem preservados. Alguns deles, inclusive, ainda tinham os emblemáticos painéis de vidro Lalique. Após dois anos de negociação, o trem acabou sendo escoltado de volta à França.

Para sua respeitosa restauração, Saint Lager e equipe entraram em contato com o arquiteto Maxime D’Angeac, que já disse entender que se trata de um trem além do tempo e da moda. A partir de 2024 — não coincidentemente em tempo para estar funcionando no período dos jogos olímpicos de 2024, cuja sede será Paris —, o Expresso do Oriente estará mais uma vez em atividade.

É uma figura mítica que volta para conduzir viagens necessárias, atravessando barreiras temporais e caminhando por trilhos que contribuem para as definições de nós enquanto produtores de cultura, não somente produtores de tecnologia. 

Vamos a todo vapor.