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#5TranseCulturaSociedade

A Morte

por Ana Bagiani

Quando apareceu o convite para escrever na edição da Amarello dedicada ao transe, sequer hesitei. Topei na hora. Afinal, é um assunto pra lá de envolvente. Além da ousadia que o tema inspira, oferece-nos também a irrecusável oportunidade de mergulhar em camadas muito pouco conhecidas de nós mesmos.

E foi até uma dessas que fui, em busca de algo original e sincero, caro leitor.

Para alcançar este depoimento, viajei ao passado. Há cerca de dez anos, acompanhei alguns “novos amigos” a um ritual, a fim de experimentar o chá de ayuasca – o mesmo que se consome na seita do santo daime. (Em tempo: existem outros grupos que praticam cerimônias semelhantes, com a mesma bebida e as mesmas canções, mas independentes religiosa/espiritual/ritualisticamente).

Lembro-me bem da aura de mistério que pairava e de um quase medo que me agitava. Era noite de sexta-feira e a casa onde nos reunimos ficava em um bairro distante, na zona sul de São Paulo. Havia cerca de vinte pessoas, das quais conhecia apenas duas ou três. A conversa informal da chegada foi dando lugar a um clima de concentração. Cada um procurava aos poucos um lugar para se acomodar. Algumas pessoas seguravam uns instrumentos, e me lembro de ter recebido um livrinho com letras de canções. Por um instante me perguntei “o que estou fazendo aqui?”, e uma voz interior respondeu: “vivendo”. Neste misto de excitação, liberdade e pânico, tomei o chá.

A bebida tinha um gosto horroroso, e nada de divino senti ao ingeri-la. A vontade de vomitar veio logo. Interessante que, ao contrário do usual, aquela ânsia não era ruim, mas, sim, um alívio. A náusea é um detalhe, é verdade, mas um detalhe bem significativo. Depois de algum tempo, não sei quanto – uma das coisas que me acometeu foi justamente a sensação de tempo dilatado, ou ainda estagnado, mas, ao mesmo tempo, profundamente intenso e amplo –, comecei a querer sair daquele barulho, ficar longe das pessoas e das músicas. Levantei de meu lugar confortável, sempre me perguntando “o que estou fazendo aqui?” e, naquele momento específico, “será que é permitido sair?”. Paralelamente, porém, pensava: “Dane-se, farei o que quiser”. Fui andando em direção ao fundo da casa, onde encontrei um quarto e me deitei. Acho que fiquei ali um bom tempo. Algo entre a culpa, o medo, a consciência e o desconhecido me envolviam de uma forma que não conseguiria jamais expressar. Nesse instante de recolhimento e solidão, meu transe de fato começou.

UM BREVE APARTE.

Segundo Aurélio Buarque de Holanda: Transe – sm. 1. momento aflitivo. 2. ato ou efeito arriscado. 3. crise de angustia. 4. falecimento, morte.

Fiquei aflita, arrisquei-me e, angustiadamente, morri.

Vi minha amiga, morta havia três anos. Vi meu avô que morrera não muito antes. Vi uma tia recentemente falecida. Todos estavam ali, separados, olhando-me, velando-me; e, um a um, vieram a mim. Literalmente, eu os engoli. Sério. A imagem que ainda carrego é a dos três entrando separadamente por minha boca, passando por todo o processo digestivo e, sim, saindo de meu corpo como se os estivesse evacuando. Curiosamente, no dia seguinte, ao refletir sobre esta imagem, a sensação de dor causada pela perda deles parecia superada, como um machucado de infância, de que você até se lembra, mas cuja cicatriz já está quase invisível.

Depois dessa vivência aterrorizante e milagrosa, senti, com toda a força, meu útero. Homem leitor, nós não sentimos o útero. Quando temos cólica menstrual, a dor se deve à descamação das paredes do órgão, mas não o sentimos em si. Assim como podemos sentir falta de ar, mas não o pulmão – percebe?

Pois eu sentia meu útero; e, ao mesmo tempo, sentia-me dentro de um. O útero da minha mãe; e a ligação era tão intensa que rompeu um cordão imaginário. O que experimentei em seguida foi uma conexão absoluta. Não com minha mãe, mas comigo mesma.

Em algum momento entre o útero e uma outra imagem que surgia, alguém veio e interrompeu meu transe, chamando-me de volta ao círculo. Não sentiria novamente algo sequer parecido com o que vivera sozinha, deitada, no quarto dos fundos.

O saldo da experiência foi válido. Tanto que decidi repeti-la. Uma única vez. Não houve, porém, visões ou sensações como as da primeira. O mal-estar predominou. Quando o ritual acabou, meu transe teve início. E fui morrer sozinha, em casa, por dois dias.

Até hoje, quando viajo e pego a estrada, deparo-me olhando a paisagem, e então me vem a sensação arrebatadora de sentir meus poros abertos e ligados a cada capim, folha, vento, flor e animal que alcance. E minha mente dá um salto imediato ao jardim daquela casa, na zona sul de São Paulo, dez anos atrás. Imediatamente, sinto o gosto do chá.

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