“Don se comporta como uma ferida aberta que não cicatriza, pois é parte de um processo de luto atípico e brutal demais para ser resolvido sozinho”
Em seu célebre texto Luto e melancolia, Sigmund Freud enfatiza uma falha primária na constituição do narcisismo que se configura essencial para distinguir o enlutado do melancólico. É quando a libido se desliga de seu objeto de prazer. “No luto é o mundo que se tornou pobre e vazio, enquanto na melancolia é o próprio ego”, descreve o pai da psicanálise na introdução do ensaio.
Há espaço suficiente para a melancolia em Mad Men, série exibida pela AMC e atualmente em sua sexta temporada. Não que seus personagens sejam dignos de pena ou apareçam constantemente aflitos, desgostosos com a sua vida, com o seu cotidiano. Mas apresentam sérias questões de autoestima em um contexto de maior e mais cruel competitividade. O profundo desagrado moral a que são submetidos em suas agendas, dentro ou fora do ambiente publicitário em que trabalham, torna-se um objeto de auto-avaliação. Como um alarme que soa todo dia e na mesma hora em que volta para a casa, senta no sofá, liga a TV e adentra em um vazio ruidoso, de falso reconforto.
A década de 1960 se demarca desde os primeiros episódios, lá no longínquo ano de 2007, com a estética que guia os padrões da então Sterling Cooper, agência de publicidade localizada na Madison Avenue. É esta mesma plástica do escritório, no coração de Manhattan, que revela o espírito do seu tempo, com seus corredores anexos que ora facilitam o fluxo das especulações sobre quem estaria saindo com quem, ora funcionam de rota de escape para um funcionário que, humilhado na frente de todos, precise conter suas lágrimas ou suas frustrações. Reflexo de uma nação que, finda a Segunda Guerra, comporta-se como exigia o protocolo: expondo-se.
Tempos de John F. Kennedy no poder, um presidente jovem, com histórico militar nas costas, mas que também carregava a trágica mística do sobrenome. Abortos, lobotomias, acidentes aéreos, assassinatos, it runs in the family. A exposição da família Kennedy na mídia se refletia no comportamento de Jack (como era conhecido): infiel, protagonizou tórridas histórias nas primeiras páginas com Marilyn Monroe, Marlene Dietrich e a menos conhecida Mimi Alford, a estagiária da Casa Branca que anos depois publicaria o escandaloso Once Upon a Secret. Seu assassinato em público, registrado para milhares de americanos em choque, enlutou uma nação que ainda tateava no escuro o caminho para liderar o mundo.
O fantasma de JFK ainda habita a série, passadas seis temporadas e mesmo em um momento de transição sociocultural norte-americano. A morte espreita progressivamente os personagens de Mad Men e, no entanto, como lhe é habitual, o anjo da escuridão elege apenas um para desafiá-lo neste tabuleiro. Claro, o protagonista Don Draper. Um dos sócios da agência, ele se apresenta aos espectadores tanto como o sintoma quanto como o diagnóstico da lógica publicitária: a figura enigmática e insegura (na projeção de seu passado) que manipula discursos e faz vender um cigarro que, apesar de ser tão prejudicial à saúde quanto o da outra marca, é toasted.
A identidade de Don Draper foi estraçalhada antes de Mad Men, na Guerra da Coreia, em um momento crucial da Guerra Fria. Dick Whitman assumiu o nome do tenente que matou acidentalmente em batalha. Teve de mudar sua vida, teve de reconstruir seu passado, suas origens, seu pensamento, seus ideias. Teve até mesmo de convencer a viúva do real Donald Draper. Conseguiu. Vendeu carros, conheceu Roger Sterling, que viria a tornar-se seu sócio, e o resto é história. Mas o sobrenome falso ainda o assombra. E a morte o ronda onde quer que vá, como se fosse um Kennedy.
Don se comporta como uma ferida aberta que não cicatriza, pois é parte de um processo de luto atípico e brutal demais para ser resolvido sozinho: ao mesmo tempo que está enlutado pelo sujeito que matou na guerra, Don fragmentou Dick Whitman, nome que assumia antes desse cataclisma identitário, repentino demais para ser processado conscientemente. Em outras palavras: Don matou Donald Draper e matou Dick Whitman (suicídio), os únicos vértices possíveis para que a terceira ponta deste triângulo prevalecesse, que é quem ele assume ser desde então. Este sujeito híbrido, com enorme dificuldade para equilibrar as memórias e os traumas de Whitman com as honrarias e os tapinhas nas costas de Draper.
O tiro na cabeça de JFK deixa toda uma nação consternada e em dúvida quanto ao seu próprio destino, mas é Don que parece se ver pessoalmente alvejado e perseguido por um atirador à distância que conhece o seu passado, suas mentiras, suas infidelidades, seus medos.
Não é mais somente o seu próprio ego que está vazio, mas nada a seu redor parece lhe preencher ou satisfazer mais. Esse luto duplo, que o faz mentir – e reproduzir, em sua profissão, a sobrevivência, custe o que custar, da mentira – multiplica-se em pequenas outras perdas afetivas ao longo dos anos, na antiga família e casa, nos filhos, na nova esposa. Nas amantes que o deixam. São pequenos, e forçados, lutos que se acumularam nessas seis temporadas até o momento e que atingiram o seu auge máximo no último ano. A carga imagética de cada uma dessas perdas é enorme em cada cena onde o protagonista revê parte de seu passado recente ruir, e a morte, em contrapartida, escurecer cada vez mais sua visão.
Don encara essa morte das maneiras mais diversas nesta sexta temporada. É o marido de sua última amante, a vizinha do prédio onde mora, que é médico e luta para salvar vidas; a imagem do crucifixo sempre presente quando ele invade o quarto da amante; o porteiro do prédio que, em um episódio de profundo mergulho em seu inconsciente, passa por algo entre a vida e a morte; o funeral da mãe de Roger (no qual Don vomita); a figura por vezes cadavérica de Megan, que faz referência implícita a alguns símbolos do acaso em diversos pontos da história.
Da primeira à sexta temporada, de JFK, passando pelo trágico suicídio de Lane Pryce, até as paranoias de Don, houve um significativo crescendo neste que é o tema que mais acompanha o protagonista.
Maníaco pela ideia de morte, Don cria ou revê mortos em seus transtornos que, graças às precisas cores psicanalíticas que o criador da série, Matthew Weiner, dá às cenas, fornecem um novo elemento estético a Mad Men, o do inconsciente, pouco explorado nas temporadas anteriores. Para um personagem de quem tínhamos pouco ou quase nenhum acesso às recônditas camadas do aparelho psíquico, trata-se de um enorme ganho narrativo.
O que antes conhecíamos de Don se limitava a suas lembranças, quando o discurso fílmico se apodera de um momento que pede flashback para informar algo ao espectador. Já registrar um momento de pura subjetividade (seja originado ou não do consumo de drogas ou álcool) do personagem requer um truque narrativo mais complexo e mais arriscado, porque tem que dar o privilégio da dúvida a quem assiste. Ou a típica pergunta que fazemos a quem está conosco no sofá da sala: “Será que Don estava sonhando ou tudo isso aconteceu?”; ou “Don matou a amante de fato ou ele só estava pensando sobre isso?”.
Se o luto faz com que o ego renuncie ao objeto, declarando-o morto e oferecendo-lhe como prêmio permanecer vivo, este parece ser o drama de Don Draper, que encerra sua existência e move todos os motivos de Mad Men. Após a morte do verdadeiro Don, em batalha, só restava uma maneira de premiá-lo: sobrevivendo, essencialmente, como tal – quase como uma negação da negação da negação do luto e da morte. Como a queda do homem, representada na abertura do seriado, em uma imagem que pode ser tanto um suicídio como a celebração do rito da defenestração, em que se remove alguém de cena para sobreviver.