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Diga-me por onde anda essa tal liberdade

por Carmen Maria Gameiro

“Todos os movimentos da contracultura estão na rua, absorvidos pela indústria cultural”

Não dá para falar em liberdade se não for do ser situado num tempo e espaço. Todo homem ou mulher no mundo de hoje muitas vezes é tratado, e se sente coisa. Essa é uma das dimensões de todos, é o conjunto de valores determinante que faz se sentir assim. A liberdade ou a não liberdade só o são em relação às situações, não raro adversas e opressoras, contra as quais, muitas vezes, nada se pode fazer.

Tanto se lutou por liberdade que as conquistas decorrentes podem ser vistas e vivenciadas nas casas, nas ruas de vilarejos e nas megalópoles. As camisetas de malha, por exemplo, que fazem parte da composição da roupa masculina, são peças democráticas. Dirigir é necessidade na locomoção, não importando o gênero nem a posição econômica. Pedir, gritar não é mais necessário, a urgência é ter voz singular, não pertencer às massas.

Grandes manifestações culturais que fazem parte do nosso dia a dia eram consideradas há bem pouco tempo como manifestações de negros libertos da escravidão opressora, e de brancos esnobes. É curioso olhar a cultura em momentos distintos. O samba era proibido de ser tocado e dançado, hoje, sem, o que seria do carnaval e da economia? O futebol, sonho de muitas crianças de corrutelas perdidas no mapa e de pais esperançosos numa carreira brilhante para seus filhos, movimenta milhões pelo mundo todo, e por aqui não se fala em outra coisa a não ser na Copa.


Os quadris deram dor de cabeça ao longo das décadas, Elvis só podia ser filmado da cintura pra cima. Era um escândalo. Elvis Pélvis e rock, sinônimos chocantes para as famílias norte-americanas do pós-guerra. O estardalhaço do funk hoje não seria um exemplo do que ocorreu na década de 1950? Proibir esse quadradinho de oito, pra quê? Quem consegue ficar de bananeira mexendo os quadris se não for magra e adolescente? Eu mal consigo ficar em pé. Pode liberar.

Quantos movimentos, quantas bandeiras não foram queimadas, e quanta gente não lutou ou sofreu pra conseguir um pouco de liberdade ou direito à voz e vez. E hoje tantos vivem e usufruem sem saber do preço que foi pago.

Todos os movimentos da contracultura estão na rua, absorvidos pela indústria cultural, produtos a serem consumidos por uma sociedade ávida por coisas sem conteúdo. Onde está o conteúdo? Não está na coisa, mas no que ela traz na sua história para desvencilhar a pessoa do desconforto, da tristeza, da dor ou da apatia. Desde o esmalte preto usado pelas atrizes e modelos na telinha, ou melhor, telona, pois antes era a tinta representando as unhas sujas de graxa dos operários ingleses. Uma das marcas do movimento da juventude proletária anarquista dos centros urbanos, que se rebelou contra a hipocrisia, o conformismo e o tédio com poucas chances de manifestações. Os punks das décadas de 70 e 80 do século passado compunham o vestuário com metais como adereços, jeans rasgado, cabelo estilo pica-pau, o preferido do supercraque hoje. O punk reciclou o rock, o avanço tecnológico deu possibilidades ao aprimoramento da música eletrônica, sendo tocada de forma mais primitiva, com três acordes.

O feminismo foi absorvido pelas meninas e mulheres balzaquianas de agora sem que saibam como foi difícil chegarmos aqui. O que seria destas se ficassem em casa num tanque lavando roupa na mão, fazendo seu enxoval à espera de um marido e tendo como futuro apenas crianças, ou, no máximo, como profissão, as ditas femininas, com direito a reuniões vespertinas com as amigas. O movimento pelos direitos civis, tanto nos Estados Unidos da década de 60 como aqui na década de 80 do século XX, nem é lembrado pela garotada, que acha um saco ter que votar…

Quantas conquistas pela liberdade de falar, andar sem sentir medo, poder vestir e cantar, ser feliz. Vivemos sem angústia e sem apatia. Bem… Deveria ser assim, mas não é.

Onde está essa tal liberdade?

“Estamos vivendo uma guerra civil,
mas não se ouve”

Há um frisson no ar em busca da tão sonhada liberdade de se sentir livre, não de um “outro” ou alguém oculto, mas do que espreita, do que não se sabe, do que vai ocorrer no minuto seguinte, do incerto e insano. As causas civis, libertárias, foram conquistadas, buscou-se tanto o direito de se falar. Hoje falta quem esteja pronto a escutar. Na ânsia por ganhar tempo e locomoção, esqueceram-se da via, do caminho. Tanto das ruas, avenidas e estradas quanto da via do sentimento. Procurou-se conforto e longevidade, mas não se ensinou pra quê. A identificação com outros indivíduos e objetos está condenada à frustração. Quando o indivíduo percebe que é único, há um limite entre ele e os outros. Não havendo possibilidades de pontes, ele sente a solidão humana.

A conquista da liberdade deveria ser uma conquista para a felicidade, mas não é. Lutar pela liberdade é a escolha pelo caminho do desconforto, da dor e da insatisfação. O ser humano nunca conseguiu lutar por liberdade e ser feliz. A felicidade de ser livre está na busca, na via a ser percorrida, e não na chegada. Muitos não chegaram a ver o resultado dessa luta, ficaram pela estrada. Ser feliz tem mais sentido com alienação e ignorância, ficar sem saber o que está ocorrendo, não situado.

“Em teu seio, ó liberdade./ Desafio o nosso peito a própria morte!” São versos do Hino Nacional Brasileiro tão atuais, poucos percebem. Viver é estar livre não importa onde, é um desafio. Buscar pela voz de poder, ser ouvido, é a liberdade que se busca hoje. De poder sair de casa e não ser morto ou assaltado. Estamos vivendo uma guerra civil, mas não se ouve.

Nada é mais atual no mundo que a voz que clama nas redes sociais para ser curtida, essa é a nova maneira do movimento social existir. Tem força de bandeira e passeata nas ruas, tomando a cidade, agora toma a rede nos confins da Terra. Enfrentam ditaduras e governos. Empresas são desmascaradas, o que era velado é descoberto. Nada mais é escondido, e a hipocrisia não tem muito tempo para permanecer. Traições duram pouco. Nada continua escondido em baús a sete chaves.

O sutiã pegou fogo, a saia subiu sumindo, telefone não é mais linha, as gravadoras não têm mais força de não gravar músicas que não querem. As coisas mudaram de mão. O que era proibido proibir, hoje é proibido fazer piada. A indústria cultural continua existindo, só que agora não tem centro. O foco é ler nas entrelinhas invisíveis da cultura pra se saber e ter ideia do que está ocorrendo. A melhor maneira é ficar aberto ao inusitado, não ter medo de sentir medo. Não é tempo de se apaixonar por causas. É tempo de existir com consciência do momento presente. Não ficar no conforto da não mudança. É um tempo de desconforto do inusitado. A sensação de não se pertencer.

É tempo de ser livre situado, de autocriar-se, de viver a responsabilidade da própria existência de modo simples e humano. Pois o essencial das relações entre as consciências é o conflito. Segundo Sartre (1943), se o outro existe, a existência do homem está ligada ao pensamento do outro, ao julgamento que o outro faz de si. E os homens e mulheres desfrutam do difícil e angustiante privilégio de assumir suas responsabilidades e escolhas livremente.

Qual a moral dessa história? Autenticidade.

Ser livre é ser autêntico, não importa o que os outros pensam ou julgam. Afinal o inferno são os outros. Não é mesmo, Sartre?