“Não sei”. Respondi uma vez a um oficial de imigração, ao pousar em Houston. Antes que ele completasse seu movimento de pescoço e sobrancelha, passando de meu passaporte em sua mesa aos meus olhos, corrigi imediatamente a brincadeira. Não recomendo reflexões filosóficas em meio a interações com agentes da lei, especialmente se forem da imigração nos EUA. Mas a verdade é que, se levada até os limites de sua implicação, é a pergunta mais importante da vida, e, logo, da filosofia, apesar da filosofia geralmente iniciar suas perguntas com por quês (a mesma pode ser lida como “por que você está aqui?”) e da vida jamais parar para nos fazer perguntas.
Não se trata de entendermos a razão pela qual estamos no mundo. Trata-se de decidirmos a razão pela qual estamos nele. Acredito que a maneira mais eficiente de se chegar a essa resposta seja pensar num legado. O que quero deixar para o mundo? Qual o meu papel nisso tudo que vejo? Meu esforço faria falta para alguém? Para que saio de casa todas as manhãs e por que alguém deveria se importar com isso?
Legado não é exatamente resultado. Por exemplo, empresários brilhantes – aqueles que buscam transformar a vida de seus clientes – falam em legado. Seus analistas e consultores de mercado é que falam em resultado. A razão de uma empresa existir, ou de alguém trabalhar nela, não é lucro ou remuneração. Isso é essencial, mas é resultado. Remuneração é pelo emprego, não pelo trabalho. Trabalho é a missão na vida. Animais trabalham. A natureza trabalha. A questão primordial parece ser o que você acredita e prega com o seu trabalho, e, traduzindo para o mundo prático, porque não escolheu um emprego em outra função. E se em meados do século passado era possível e desejável separarmos vida pessoal de vida profissional, esse não é mais o caso.
Veja novamente o mundo corporativo. Empresas modernas trabalham com o conceito de responsabilidade social, que nada mais é que a compreensão de que, para além de fabricantes de sapatos, de exploradores de minério etc., as pessoas são também membros civis da sociedade e têm a obrigação de realizar suas atividades como tal. Empresas são formadas por pessoas, e ganham dinheiro atendendo as necessidades de outras pessoas. Portanto, a tal responsabilidade social faz parte da evolução humana, e já está constatado que a separação das nossas diferentes facetas sociais (empregado, consumidor, cidadão, chefe de família etc.) é falsa, pois somos, cada um de nós, uma figura só, que, integrada a outros, forma uma outra coisa só.
Menosprezar a função vital do trabalho evocando a felicidade pessoal é conveniente aos que não curtem o que fazem. A teoria aí é que trabalho não é importante, pois, antes dele, importa mais sermos caras legais, isto é, bons pais, bons filhos, bons amigos. Mas pessoas legais não têm uma paixão? Não têm ideais e sonhos? O resultado disso parece ser inexoravelmente frustrante, não importando o quanto a pessoa tente convencer a si mesma de que seja um herói familiar.
Família não deve ser escudo. E não podemos nos esquecer do significado original da palavra “profissão”, nada mais do que aquilo que alguém professa, acredita e escolheu dar ao mundo. Quer mesmo dizer ao seu filho que você veio ao mundo apenas para cuidar dele? E ele veio para quê, então? Para ser o último imperador? Nenhum animal selvagem faz isso – apesar de zelar até as últimas consequências por seus filhotes –, pois existe o resto da floresta e o equilíbrio do ecossistema.
Se queremos mesmo abandonar a separação de nossas horas e misturar tudo, precisamos amar o que fazemos com o mesmo ímpeto que amamos nossas famílias, pois só assim nossos momentos de trabalho valerão tanto quanto os de lazer e abstração. Mas o que consigo fazer por amor e não por um contracheque? A resposta precisa da definição da sua missão na Terra, e a melhor maneira de defini-la é tentar definir que legado gostaria de deixar.
Se você ainda não sabe, dizem que o importante é jamais parar de buscar. Nem sempre é fácil descobrir qual é nossa missão no mundo, e nem sempre é fácil compreender o legado de quem já se foi. Os chineses dizem que ainda é cedo para compreendermos o legado da Revolução Francesa no mundo ocidental. Os brasileiros dizem que é tarde para ainda acreditarmos na nação do futuro. Nem um nem outro importam, pois explicações podem ser tão subjetivas quanto a grandeza de seu legado. Por isso, perseguir algo grandioso é até mais importante que alcançá-lo. Por isso, a melhor unidade métrica para o homem é o legado, que só pode ser medido por quem vem posteriormente, poupando-nos de um juízo final antecipado, enquanto ainda estamos sobre carne e osso e aptos a prosseguir.
Não sei que humilde legado poderia tentar deixar ao leitor a não ser insistir nesse conselho de vida tão óbvio. Procure incansavelmente sua melhor missão e acredite estar construindo seu melhor legado. Poupe suas explicações mais profundas aos poucos a quem as deve, que são os agentes de imigração, os filósofos, seus herdeiros e você mesmo.
Tire-me somente uma pequena curiosidade: o que você está fazendo aqui?
O que você está fazendo aqui?
por Bruno Pesca