Domingo. Acordo entre as paredes de granito de uma casa antiga, que está na minha família há muitas gerações, dizem, desde o século XVII. Abro a janela para a manhã chuvosa de setembro. Entre as portadas Bordeaux, estende-se, bucólica, uma familiar paisagem de vinhas, amparada por suaves montanhas ao fundo. Déjà vu recorrente.
Olho de relance para a mesa da sala. Alinha-se uma coleção de umas nove garrafas de formato Borgonha. Por baixo dos reflexos que brilham no vidro escuro surpreende-me a alegre precisão das imagens dos rótulos, geométricas e contemporâneas, em cores variadas. Do lado direito destas, lêem-se 5 letras maiúsculas – Aphros.
A elegância e a nitidez da presença dos objectos contrasta com a consciência na qual surgem, sem desenho que a defina ou margens que a contenham. Que nada sabe sobre si mesma. Consta que os primeiros nasceram da segunda, que nela habita o criador, o produtor, o responsável.
Nasce um sorriso. Em verdade, esta apenas sabe que, em nenhum momento, o mistério que ali se esconde nasceu da sua vontade, intenção ou conhecimento.
Nunca teve a ambição de fazer vinho, e mesmo hoje, com toda a evidência de garrafas cheias, compostas, numeradas, avaliadas pela crítica, e exportadas para um sem número de países, continua a não o fazer.
Um mistério que não se resolverá.
Muitos anos atrás, ao chegar a um restaurante, depara-se-me, recortada na luz da janela debruçada sobre o mar, a silhueta dum velho e querido amigo, monge budista e brasileiro. Iluminam-se-nos os rostos de alegria e espanto, pois chegara a Portugal sem que nos comunicássemos.
Surpresa que era apenas a primeira de várias, que se sucederiam como bonecas russas. Contou-me que viera de propósito àquele lugar para tomar um vinho que apenas ali se podia encontrar. Sabendo-o abstémio, tal como eu era desde que me conhecera, a surpresa vira estupefacção quando ouço: “Vasco, gostaria de aproveitar este acontecimento para te mostrar uma descoberta que mudou a minha vida!”. Chama o sommelier, e encomenda uma garrafa da safra do ano em que nos encontráramos pela primeira vez.
E assim, entre dois ex-abstêmios, se iniciou a conversa que o vinho escolheu para se apresentar àquele que, anos mais tarde, o destino incumbiu de se ocupar duma pequena quinta ao norte de Portugal. Lá, num recanto verde esquecido pelo tempo, entre regatos, ervas, carros de bois, pés descalços e lábios pintados de vinho retinto. Onde um menino de Lisboa aprendeu, em finais dos anos 1960, a vida rude e maravilhosa do campo, ainda em contornos medievais.
Enfim, chegáramos a 2002 e era preciso encontrar uma solução para tornar a quinta sustentável. Vender uvas tornou-se negócio ruinoso, e o Sr. Antônio, o capataz, estava com 80 anos e a precisar de reforma. Fazer um vinho engarrafado para vender localmente, reativando a velha adega, parecia uma solução sensata e de baixo risco, além dum hobby prazeroso.
Esse o plano do produtor, não certamente o do vinho. Desenganem-se todos os que sonham com a pacatez e o romantismo, se algum dia pensarem em dedicar-se à atividade tão estrênua. Além disso, com os planos que o vinho tem para si mesmo, não adianta argumentar. O Aphros, por exemplo, é bem mais cosmopolita do que eu, que jamais pensei assistir ao vinho da minha velha quinta viajar a países como Japão ou Austrália. Ou a ser apreciado por críticos como Jancis Robinson, que formam a opinião internacional. Mas, se bem que alguma visibilidade ou verniz de glamour possam ser úteis atualmente para a sobrevivência duma vinícola, a verdade é que esses, assim como os preços do mercado, são aspectos laterais e largamente aleatórios, que raramente traduzem o espírito dos vinhos. A viticultura dedicada e ligada à terra é uma vocação diferente da que impera no mundo do comércio globalizado que domina os mercados, inundados pelos vinhos comerciais de grandes empresas que usam extensivamente a agroquímica e os processos industriais, e que são servidas por máquinas colossais de vendas e distribuição. A alma do vinho, essa continua sendo guardada por gente humilde e quase anônima, que o continua fazendo porque nasceu para o fazer.
Nascido originalmente como uma bebida sagrada, e companheiro do Homem em sua caminhada, o vinho, tal como a Fé, é um dom e um chamado à autenticidade, que nos convida a beber da fonte da vida. Porque se a Fé é esse lugar no fundo de nós, onde mora a certeza na bondade da existência, o vinho lhe facilita o acesso, com o mistério de nos fazer sentir esse acordo entre nós e todas as coisas.
Porque inseparável do homem e espelho da sua visão de mundo, o vinho caiu com ele nos abismos em que se despenhou, acabando por se tornar um mero produto de consumo. Tão artificialmente manipulado que a maior parte das vezes nada mais resta da denominação de origem com que é propagandeado, nem da vida que nele deveria alimentar os corpos e as almas.
Ao mesmo tempo, um dos maiores fatores de esperança do nosso tempo é justamente o movimento internacional de resgate do vinho, envolvendo produtores, apreciadores, críticos, comerciantes e restauradores. Os vinhos biológicos, biodinâmicos ou naturais são já o futuro, e estão na vanguarda do movimento ecológico, incorporando em gosto e profundidade um ideal de verdade que podemos provar em cada copo, renovando prazerosamente a nossa Fé.
E, por falar na revolução dos vinhos naturais, é essencial mencionar o filme Mondovino – que considero o maior gesto de Fé da história do vinho, realizado por Jonathan Nossiter, brasileiro por adoção, e cineasta que se tornou o herói duma causa até aí por defender. Talvez o primeiro ser humano a levantar-se e acordar o mundo para uma questão ética e existencial muito mais central na nossa cultura do que se imaginava. E não para de me causar espanto como o fez, saindo estrada afora munido apenas com uma câmara de filmar, para mudar para sempre a consciência planetária. Mondovino é a lança cravada no peito do dragão – depois dele, nada mais será como antes.
Muito devo aos meus irmãos brasileiros, tendo aqui referido dois (mas são muitos, muitos mais!), que fazem parte do meu vinho e da minha Fé. Devo-vos também o meu ritmo favorito, sincopado e a contratempo, que, tal como o vinho, nos liberta e faz sorrir, tornando a existência numa brincadeira feliz. E que mais pode ser o samba e o carnaval senão a celebração da Mente Confiante por parte duma nação inteira? A vós ergo a minha taça, com profunda alegria e gratidão.
O vinho e a fé
por Vasco Croft