“Madame Bovary sou eu”, assim respondeu Gustave Flaubert ao processo movido contra ele por obscenidade, atentado à moral e conivência com o adultério após o lançamento do seu célebre romance. Se pensarmos, no entanto, na figura do escritor como um reflexo da sociedade burguesa da qual participava, Madame Bovary era também a imagem de todo francês daquele tempo, fruto dos seus costumes, instituições e da sua educação; e são tanto quem era esse francês quanto como ele foi retratado dentro da obra as perguntas que tal frase nos enseja.
Antes de entrarmos propriamente em tais questões, mas já entrando nelas de forma oblíqua, cabe-nos fazer um recuo ao horizonte de expectativas romanescas e estéticas que figuravam na época do lançamento do livro. Naquele tempo, a experiência de leitura dos futuros leitores de Flaubert era dada pelos romances de Stendhal e de Balzac, nos quais os protagonistas, em geral vindos do meio rural, deparavam-se, cheios de sonhos e de vontades pungentes, com o grande cenário de Paris, com o clima de boemia, com os teatros e as tentações da metrópole em meio ao turbilhão da Revolução Francesa e do período napoleônico. Personagens de modo algum vulgares, destinados a enfrentar os limites impostos pela ordem social vigente num clima de euforia e de crença nas capacidades e liberdades do indivíduo, educavam as mentes e os corações dos franceses até a inversão cáustica proporcionada pelo romance flaubertiano: em vez das luzes e dos cafés de Paris, os personagens de Madame Bovary nascem, pertencem e vivem no mundo rural, provinciano – sem grandes chances de moverem-se dali.
A ação é ambientada num lugarejo de nome Yonville, cujo centro urbano mais próximo é a cidade de Ruen, uma espécie de Paris de segunda ordem nas palavras do crítico Samuel Titan Jr. Em vez dos tempos conturbados da revolução, o autor nos situa no tempo pós-revolucionário, conhecido como a Monarquia de Julho, um hiato entre dois Napoleões, época do reino de Luís Felipe, da crescente fé na revolução industrial e da consolidação do bem-estar burguês, na qual as pessoas não se dão mais o luxo de serem excêntricas, mas se movem de acordo com o interesse, o lucro, o desejo material e o esclarecimento científico baldio de alguns se contrapondo à fé dogmática de outros; e, principalmente, em vez de heróis, somos apresentados à gente inepta para as tramas românticas de então, incapazes de triunfar no mundo como ele é, quer pela falta de talento, quer pela falta de uma vontade legítima, seja pela mediocridade provinciana, seja pelos ares campestres que reproduzem. Desse modo, o autor parodia, tomando como modelo e rebaixando, toda a produção literária precedente e, indo além desses pontos, inova o que vinha sendo produzido ao procurar o emprego da palavra exata, o realce do detalhe, o alto grau de percepção visual, a compostura não sentimental sem comentários supérfluos, a verdade mesmo que sórdida, a neutralidade ao julgar o bem e o mal. O narrador desaparece em prol da matéria narrativa, dos personagens que, quase independentes de seu autor, por meio do confronto de caracteres e vontades, deverão ser responsáveis por guiarem seus destinos até o fim de suas tramas. Nas palavras de Flaubert, “um autor deve ser como Deus no Universo, presente em toda parte e visível em parte alguma”.
Tais considerações contribuem para nossa resposta, que, não obstante, deve levar em conta a impotência feminina retratada no livro, contra a qual a protagonista se revolta a ponto de desejar na gravidez que seu filho nascesse varão. Sendo, porém, o realismo como uma nódoa de sujeira numa calça branca, Emma dá à luz uma menina, que, ao final do romance, será largada ao acaso do mundo e a parentes distantes, tendo de trabalhar numa fábrica de tecelagem para suprir suas necessidades. Na França de 1827-1846 – tempo cronológico da obra –, somente os homens tinham o poder de guiarem suas vidas no bem e no mal, de terem acesso à riqueza e à propriedade. As únicas alternativas de Emma para satisfazer suas aspirações, portanto, ou se darão por meio do sucesso profissional de seu marido Charles, que poderia levar o casal a um novo degrau da estratificação social, o que não se torna possível devido à incompetência dele em todas as esferas, ou recorrendo ao seu corpo como moeda de troca, utilizando-se do fascínio que despertava nos demais. Assim, o adultério da heroína é a sua maneira de ter algum controle sobre o próprio destino, possibilitando seu empoderamento sobre os amantes, resultando no seu endividamento e consequente suicídio.
Fruto de uma educação sentimental em um convento, de natureza idealista, numa espécie de paródia quixotesca, cuja insatisfação crescente com a realidade a leva a cada vez maiores exageros, Emma Bovary revolta-se contra as convenções de sua classe. Ela é o contraponto entre os ideais românticos e a realidade asfixiante de seu meio, de modo que, ao assumir a responsabilidade por seus atos, é esmagada pelas dívidas e pela desilusão em relação ao amor pobre que seus amantes lhe votavam; seu charme lhe serviu ainda uma última vez para convencer Justin, ajudante do farmacêutico Homais, a lhe permitir a entrada no aposento onde este guardava arsênico. De todos os ângulos em que se a olha, a punição da personagem feminina, que ousou alimentar uma força maior que a de seus pares masculinos, é a morte: o recurso ao suicídio, que, no lugar do sono tranquilo da promessa de felicidade romântica, vem carregado de dores, de vômitos e de sangue, de uma tortura que dura muito tempo.
A resposta de Flaubert sobre a identidade de sua protagonista em nada nos alenta em relação a quem era o francês seu contemporâneo. Enquanto Emma revoltava-se, a vida burguesa seguia sem grandes sobressaltos. Os demais personagens da obra se esvanecem se comparados a ela. Contudo, é a mediocridade deles que triunfa: a sua falta de gosto, as suas ambições em matéria de conhecimento e crença numa tecnologia de que não entendem. Charles é um homem vulgar, ordinário, que não logrou ser médico, mas um simples oficial sanitário; o farmacêutico Homais é o pretenso homem de ciência; partidário dos ideais positivistas e crente no progresso, sua linguagem é recheada de lugares comuns de desprezo à Igreja e à burguesia (da qual faz parte), fala de tudo e de todos, escreve à imprensa, faz alarde de sua presença, mas é limitado e cego aos próprios defeitos, sonha com glórias como a Legião da Honra, a qual, por fim, consegue; Monsieur Lhereux é um mercador manipulador que, por meio de algumas alusões aos casos de Emma, convence-a a consumir e a renovar suas dívidas até desesperá-la e impeli-la ao suicídio; os dois amantes da protagonista são ambos superficiais: Rodolphe Boulanger é um típico conquistador, homem de certa nobreza e de certo saber, que, sentindo-se atraído superficialmente pela heroína, a enquadra num estereótipo de mulher ingênua e seduzível, perdendo o interesse por ela, por não ser capaz de corresponder à intensidade de seus sentimentos, ao passo que Léon Dupuis compartilha as ideias românticas da amante, juntamente ao seu desprezo à vida comum; mas, ainda que fosse educado em Paris, se mostrasse corajoso em confronto com a gente de Ruen, se amedrontaria em frente a qualquer moça de família parisiense; no início de seu caso, o casal ama-se com toda a vontade de seus corações, porém o escrevente também não é capaz de manter a reciprocidade dos ímpetos de Emma, sentindo-se a parte fraca da relação. Quem seria enfim a Madame, ou, melhor dizendo, os franceses a quem ela apontou o dedo na cara?
Fracos, manipuladores e vulgares são os homens sob o crivo da pena de Flaubert. Embora sejam eles que detenham a capacidade de movimentar-se livremente na sociedade, todos se tornam presenças e caracteres mais fracos que a protagonista, cujo destino, uma ironia do autor à sociedade da época, prefere a morte dolorosa ao convívio com eles.
Um apontamento de identidades
por Arthur Telló