“A arte moderna começa com a renúncia à pintura de História.”1

A Independência vai desaparecer. É fato. A pintura conhecida como “O grito do Ipiranga”, de Pedro Américo, 1888, encomenda feita pela família real brasileira para exaltar a figura de D. Pedro I e plasmar no imaginário o símbolo da independência de Portugal proclamada em 1822, não poderá ser vista até 2022, ano no qual serão terminadas as reformas do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, em cuja coleção a obra se encontra.

Independência ou morte (versão provisória 1) 2014

Sem se propor a debater a significação política da criação de mitos históricos, na própria obra e no próprio museu (todo seu acervo é relativo à Independência), sua decadência e sua reinauguração, a realidade é que uma das pinturas de referência da cultura popular brasileira só vai estar disponível à nossa visão, nos próximos nove anos, através de reproduções.

Esta é a notícia com a qual Bruno Moreschi começa a dar forma ao projeto “Em obras”. A primeira proposta é a reprodução da famosa imagem de Américo, em partes e destacando alguns detalhes, feita por várias mãos de “pintores de rua” no ateliê do artista, que atuou como assistente.

Independência ou morte (povo 2), 2014

É uma primeira camada da investigação que Moreschi vem desenvolvendo, que, em sua forma mais abstrata, eu chamaria “do visível e do invisível”. Porque a obra original vai passar a ser invisível, uma vez que os destaques são personagens normalmente não percebidos nem citados na história oficial: um tropeiro, um boiadeiro e uma pessoa na janela de uma casa. São as testemunhas mudas, os invisíveis do relato visível.

A reivindicação do conteúdo se revela também no processo: as peças foram produzidas em colaboração por uma equipe de diferentes pintores que comercializam seu trabalho negociando diretamente com o cliente e usando o espaço público como lugar de vendas. São esses trabalhadores ou profissionais da arte que, assim como um assistente tanto no Renascimento como agora, permanecem invisíveis na instituição arte.

Nesta ocasião, todos eles aparecem como artistas da mostra, todos são autores das obras. O interessante deste processo são as relações criadas para além do conceito de obra ou de autoria, já que estamos falando a partir de um espaço que faz parte do aparelho validador da arte contemporânea. Cada uma das pessoas contratadas como um trabalhador para realizar a cópia de uma obra estabeleceu uma relação laboral. E aqui se levanta a grande questão sobre o que seria e o que definiria um artista profissional, um trabalhador, portanto, em nosso ambiente de arte contemporânea e fora dele.

Diálogo 1:
BM – Não vamos terminar toda a pintura, acho melhor mostrar um pouco o processo… Que tal?
P1 – Você tem certeza?
BM – Qual é o problema?
P1 – É que vão achar que pinto mal.

Habilidade, destreza, acabamento, processo, finalização, certeza. Um produto acabado não deixa à vista nenhuma das partes do processo. A obra de arte é só um produto num contexto de mercado, mas tem, ou deveria ter, um significado e uma autonomia para além deste. A atividade artística contemporânea não se enquadra apenas aos meios e sistemas de produção. Além do mais, seus processos, abertos à crítica e autocrítica, ao livre pensamento ou à dúvida, podem/costumam gerar estupefação e/ou desagrado em uma grande maioria da sociedade, mais ainda se sua forma de concretização – que poderia ser qualquer uma – se afasta das tradicionais belas-artes.

Sigmar Polke dizia que a pintura não era mais que uma moral construída.

“Independência ou morte”, esse é o título original da obra do Ipiranga, mas a Independência é circunstancial, por vários motivos: porque, afinal, não estamos falando do que aconteceu às margens do Ipiranga, mas principalmente disso, porque qualquer pergunta que lancemos sobre as relações criadas num sistema dependem de seu contexto.

A segunda ação realizada por Moreschi consistiu na contratação de nove pintores de parede para que livremente escolhessem uma cor, uma forma e um pedaço de uma das paredes da galeria para aplicar a tinta. A composição foi totalmente determinada por eles – por acaso, todos realizaram retângulos como nas provas de cores, embora numa disposição livre – sem indicação ou julgamento estético algum do artista.

Diálogo 2:
P2 – Mas eu sou pintor de parede. Estou acostumado a pintar parede…
BM – Mas vai ser na parede.
P2 – Mas eu pinto sempre do mesmo jeito. Vou ter que criar?
BM – Vai ter que escolher o jeito que você achar melhor…
P2 – Vale tudo?
BM – Vale.
P2 – Então a conclusão é que vou ter que criar.

O materialismo histórico divide a sociedade em proletários e capitalistas; Hanna Arendt o faz em A Condição Humana: o técnico para o qual o trabalho é um fim em si mesmo, e homo faber, o produtor superior de pensamento. Richard Sennett, por sua vez, propõe um sistema no qual a ação da mão e do cérebro se dá de forma conjunta, sem negar a ninguém a capacidade dessa dupla ativa e reflexiva, e que chegaria à sua máxima potencialidade nos trabalhos colaborativos horizontais2.

Unindo as ideias de Rosalind Krauss3, que define a prática artística como uma série de operações lógicas efetuadas sobre termos culturais, às de Bourriaurd4, segundo as quais “fazer a obra é inventar uma maneira de trabalhar, mais que ‘saber fazer’ tal coisa melhor que outras”, poderíamos pensar na instalação Pintores como uma proposta para repensar novos contextos sociais através da reflexão dos termos “artesanal” e da expressão “relação de trabalho”.

O desafio continua sendo a conexão real do mundo da arte contemporânea e da sociedade na qual se insere. Qual é o conceito de trabalho, e o conceito percebido sobre o trabalho do artista e/ou o artista como trabalhador?

Diálogo 3:
P3 – Pode ligar para minha mulher. Diz que virei artista. Vou terminar aqui e depois deitar na rede.

Independência ou morte (Fragmentos 1 e 2), 2014
Independência ou morte (versão provisória 1), 2014

Notas:

1. Nicolás Bourriaud, Formes de vide. L´art moderne et l´invention de soi, 1999.
2. Richard Sennet, The Craftsman, 2008
3. Rosalind Krauss, L’Originalité de l’avant-garde et autres mythes modernistes, Paris, 1993.
4. Nicolas Bourriard, op. cit.