#22DuploCulturaLiteratura

Corpos são feitos para encaixar e depois morrer

por Bruno Cosentino

É frequente ouvirmos que todo homem tem um lado feminino e toda mulher tem um lado masculino. Afinal, temos todos uma origem comum. Mas que origem é essa? Os homens imaginam histórias na tentativa de explicar o mistério.

Um No começo, o homem era macho e fêmea. A história do primeiro ser humano como um duplo faz parte do imaginário de diversas culturas. No Ocidente, nos chegou a partir de duas fontes principais: o mito do andrógino, que remonta à Grécia antiga, berço da nossa civilização, e o mito hebraico-cristão de Adão e Eva. No Banquete, de Platão, é contado que, a princípio, havia três espécies na Terra: o homem, a mulher e o andrógino. Este era uma espécie corajosa e forte de corpo, tinha duas cabeças, quatro braços, quatro pernas e dois órgãos de geração. Pretendeu fazer guerra aos deuses e, como castigo pela insolência, Zeus ordenou separá-lo em dois, “do mesmo modo que com um fio de cabelo se dividem os ovos para temperá-los com sal”. Há também vários indícios no Gênesis de que Adão, criado à imagem de Deus, reunia em estado psíquico elementos masculinos e femininos, segundo o princípio da harmonia universal do uno, que é composto de dois. Também era, portanto, um andrógino. A essa altura, possuía uma sexualidade em estado primário, acasalando-se com os animais (não por outro motivo os havia nomeado, pois o desejo por algo implica nomeá-lo). Também por isso surge a necessidade de diferenciação. Assim, no Jardim do Éden, não tendo Deus encontrado parceira a par de Adão, cria finalmente a mulher a partir de sua costela: “E disse o homem, esta desta vez osso de meus ossos e carne de minha carne; a esta chamarei mulher.”

Dois Pois, entre o homem e a mulher, o desejo. Agora partes separadas, não cessavam de buscar a metade perdida. Quando se encontravam, lançavam-se aos braços um do outro até morrer de fome. Compadecido com a extinção da raça, Zeus transpôs os órgãos genitais para a frente, pois até então os andróginos concebiam e geravam sozinhos. Dessa forma, o homem e a mulher passaram a reproduzir. Adão e Eva ainda estavam no Paraíso. A serpente deu voltas em Eva e a fez comer o fruto da árvore do conhecimento. Disse: “Morrer não morrereis, pois sabe Deus que no dia em que dele comerdes se abrirão vossos olhos e serão como deuses”. A árvore era uma delícia para os olhos da mulher, e ela acabou por ceder à tentação. Também deu de comer ao homem. Abriram-se, então, os olhos dos dois e descobriram-se nus. A perda da inocência.

O retorno ao um – O homem e a mulher irradiam dos órgãos sexuais um magnetismo que, mais forte do que a razão, traz à superfície das convenções sociais a dimensão do interdito que está na origem da queda — foi por desobedecer aos deuses que os andróginos foram separados em dois, foi porque Adão e Eva comeram da árvore do conhecimento antes que comessem da árvore da vida e vivessem para o eterno-sempre, que acabaram expulsos do Paraíso. O homem desejou a imortalidade dos deuses e, como castigo, foi condenado à solidão. Nascemos e morremos sozinhos, e, entre nós, um abismo insondável. Mas o sentimento de finitude não nos é suportável; por isso, desejamos a fusão com o outro numa tentativa desesperada e inútil de retorno ao um originário. A nudez — a abertura dos corpos através de seus canais — perturba a ordem, instaura um estado de violência, descontrole e perda de si. Daí a metáfora do orgasmo como “la petite mort”, pois, para Georges Bataille, o desejo de fusão só pode encontrar sentido na morte: haveria um momento durante a reprodução em que o espermatozoide e o óvulo, enquanto seres no estado elementar de finitude, se uniriam para a formação de um novo ser a partir da extinção dos seres separados. Esse novo ser traria inscrito em si a marca da fusão mortal.

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Até os dez primeiros dias de gestação, não há distinção entre o órgão genital masculino e feminino. A depender dos genes determinados no momento da concepção, o pênis e a vagina se desenvolvem pela presença ou ausência de andrógenos; a glande e o clitóris possuem estrutura equivalente. Fora da barriga da mãe, caídos nas horas, meninos e meninas deslumbrados continuarão a busca sem nexo do eterno um.