Portfólio: Monica Rizzolli
“Corpos na paisagem. Corpos são paisagem.” As frases pinçadas de uma nota presente no antigo ateliê de Monica Rizzolli, na rua Major Sertório, servem de uma espécie de síntese do trajeto da artista de 35 anos. Nascida em São Carlos, ela agora está radicada perto do antigo espaço, na Nestor Pestana, ainda no movimentado Centro de São Paulo. As afirmações também ressaltam muito do caminho poético da artista paulista, como a se referir sobre a investigação persistente das paisagens e a exploração das urbanidades contemporâneas, em permanentes fricções sem descanso, e sobre como as subjetividades — em especial, por meio do corpo — se relacionam com tais elementos nesses tempos complexos.
Deve ser ressaltado que a linguagem com a qual Monica exibe essas perspectivas não tranquilas é, em especial, o desenho. Por mais que esteja envolvida com ferramentas de programação — e aí a artista flerta com o que é chamado de code art, processing art e similares terminologias que não precisam ser aqui citadas — ou que seja realizada pelo mais simples grafite sobre papel, a produção da artista sempre revela algo próprio do universo gráfico. “Quando faço programações avançadas e manejo questionários, entre outros procedimentos, mesmo que isso resulte em uma videoprojeção, eu não deixo de escrever uma imagem”, conta ela, diante de um laptop em que elementos em preto e branco de um programa especial pululam incessantemente na tela. “Estou fazendo uma escritura de desenho, lançando mão de ferramentas avançadas que posso utilizar hoje. E a ideia continua no fundamento de tudo.”
Monica desdobra agora pesquisas desenvolvidas anteriormente em outros centros. Viver nesses circuitos fez com que ela se aproximasse da produção de artistas conceituais que pouco chegam ao Brasil — ou sequer expostos, pois muitas vezes nunca estiveram em mostras institucionais por aqui —, os quais estudou quando estava em concorridas residências artísticas na América do Norte, Europa e Ásia. Os britânicos do grupo Art&Language e os norte-americanos Douglas Huebler (1924-1997) e Charles Gaines (1944) podem ser destacados na formação. A produção de alguns deles possui facetas em consonância com outros meios, como a marcante parceria de Gaines com a dança, por meio de trabalhos feitos com a companhia de Trisha Brown (1936-2017), por exemplo.
“Todos trabalhavam e questionavam a todo tempo a linguagem em suas obras, e isso me interessa”, diz ela, lembrando que os interstícios entre o conceitual e o tecnológico são prestigiados em instituições de países tão diversos como EUA, Espanha, Alemanha e Coreia do Sul. O madrileno Museu do Prado, um dos templos da arte em âmbito mundial, além das impressionantes telas de Velázquez e Goya, também tem seu MediaLab. “Apesar da óbvia estrutura que essas instituições oferecem lá fora, não deixo de estar otimista com o que vem surgindo no Brasil, especialmente em núcleos na universidade e em áreas como a matemática e a computação. Tudo é muito novo e avança rapidamente.”
Arquiteturas do desenho
Antes das residências artísticas, Monica foi representada por galerias dos meios paulistano e carioca — Central (em SP) e Laura Marsiaj (no Rio). Apresentava uma figuração colorida, algumas com climas oníricos, em peças que iam de páginas A4 a telas de escala mais generosa. Graduada em Artes Visuais pela Unesp, conseguiu uma bolsa para estudar pintura e desenho na Universidade de Kassel, a cidade que sedia a Documenta, principal mostra em âmbito mundial, realizada de cinco em cinco anos. Frequentou a edição de número 13, datada de 2012 e sob a batuta da curadora norte-americana Carolyn Christov-Bakargiev, que contou com nomes incensados como o francês Pierre Huyghe, o libanês Walid Raad e o histórico conceitual italiano Alighiero Boetti (1940-1994), entre outros. “A Documenta é como um disco voador, pousa na cidade e sai abruptamente. Obviamente frequentei muito a exposição, mas vivia na outra Kassel, a real”, conta ela.
Não sabia alemão e foi aprendendo aos poucos, numa classe em que havia poucos estudantes de fora do país. “Sem um ateliê, fui me virando com o que tinha. Sempre levava um caderno na bolsa, tipo Moleskine, e eles foram usados sem parar.” Daí surgiu a série Catálogo de Padrões Arquitetônicos (2012). Em viagens pelas cidades da Alemanha e de países próximos, como Bélgica, Holanda e República Tcheca, Monica retratava as fachadas de construções variadas. “Reuni esses cadernos de viagens. Juntos, me intrigava muito o fato do porquê, em uma área relativamente pequena, tantas mudanças aconteciam”, diz ela. A arquitetura passou a ser um eixo poético de seu trabalho, e isso só foi aumentando de acordo com as outras residências pela qual passou.
A experiência maximizada nesse sentido foi quando Monica se instalou na residência Creatives in Residence, na região de Hangzhou, na China. Em um distrito industrial longe de tudo e convivendo com artistas dos quatro cantos do planeta — entre elas, a gaúcha Romy Pocztaruk, que esteve na 31ª Bienal de São Paulo —, a série de fachadas arquitetônicas foi aumentando e se transformando. Em relações epistolares com amigos, pedia para eles descreverem as fachadas de onde viviam e trabalhavam. A partir dessas informações, elaborava as peças gráficas, que poderiam ser incrivelmente fiéis à realidade ou distanciar-se longinquamente dessa “verdade”. Daí viria a série Decode, cujas extensões ainda se desenrolariam por residências seguintes em Nuremberg, na Alemanha, e em Madri. “O interessante foi chegar mais perto dessas estruturas de linguagem. Traduzir, construir, perceber lacunas, todas eram operações que me instigavam”, afirma ela.
Nas residências seguintes — em Caylus, uma cidade medieval do sul da França, em 2014, e em Los Angeles, no MAK Center for Art and Architecture, em 2015 —, Monica enveredou por uma cartografia especial, ligada ao mapeamento do território onde estava inscrita. Para isso, começou a aprender mais sobre programação e, em resumo, sobre categorias mais conhecidas como code art e processing art. Essa “escritura” de um desenho, mais afeito às novas tecnologias e com resultados abertos e permeáveis, levou o corpus de sua obra para outras configurações. “Não deixa de ser um constante desafio. Como apresentar? Numa videoprojeção? Com documentação a ser consultada? Em sites em que as ferramentas do processo de programação podem ser baixadas?”, questiona-se a artista. Isso tudo não se distancia da investigação da paisagem, de como nossos corpos se ligam a tais entornos e de como a arquitetura se configura de maneiras mais movediças, incertas e líquidas. Todos esses são elementos que não se descolam da pesquisa de desenho de Monica desde o início, mas por meio de uma especial categorização dessa linguagem.
“Nas artes da interatividade, portanto, o destinatário potencial torna-se coautor e as obras tornam-se um campo aberto a múltiplas possibilidades e susceptíveis de desenvolvimentos imprevistos numa coprodução de sentidos”, escrevia, no hoje longínquo 2003, o multiartista Julio Plaza (1938-2003), na publicação Arte Telemática, de Gilbertto Prado. A lembrança é mais que fecunda para nos debruçarmos agora sobre a pulsante e atual obra de Monica Rizzolli.