Fotografia de Guilherme Bergamini

Sociedades democráticas pressupõem cidadãos educados, isto é, bem-informados e críticos, tanto porque se requer que eles sejam capazes de formar conscientemente suas preferências e escolher entre partidos, programas e candidatos diferentes, quanto porque se supõe que devam fiscalizar minimamente seus representantes e agir na política diretamente, quando necessário.

Nesse contexto, a educação é considerada um direito universal e, consequentemente, um dever do Estado, que deve provê-la gratuitamente e com qualidade a toda a comunidade que governa.

Por essa razão, historicamente, as lutas pela democratização das sociedades ocorreram concomitantemente a campanhas e à promoção de políticas públicas de universalização do ensino. Para se tornar uma democracia, considerava-se absolutamente necessário educar minimamente os cidadãos. Segundo essa mesma lógica, cumpre lembrar que, durante muito tempo, a escolarização foi uma barreira à participação política: não ser escolarizado implicava não estar qualificado para ser cidadão.

O Brasil, marcado por um passado de profundas desigualdades e injustiças, vive ainda, em pleno século XXI, o desafio de garantir esse bem essencial a parte significativa de seu povo. Estima-se, em 2018, que aproximadamente 1,9 milhão de crianças e jovens estejam fora da escola, em geral residentes em locais ermos e em condição de vulnerabilidade social. Ademais, indicadores como a taxa média de anos de estudos, o índice de analfabetismo, o percentual de investimento público por aluno, etc., colocam, ano após ano, o país atrás não apenas das nações desenvolvidas, mas de quase todos os países do mundo subdesenvolvido, inclusive de países efetivamente pobres (não apenas desiguais, como é o nosso caso), e que, portanto, têm menos recursos à disposição para investir nessa área.

Longe de se supor que não houve melhoras, ou de que os vários governos foram igualmente relapsos com a educação brasileira; fato é que nosso país partiu de um patamar absolutamente avesso a esse campo. Muito tardiamente fundamos por aqui instituições de ensino, e elas permaneceram por séculos a fio como um bem reservado aos filhos das elites locais. Afinal, éramos o país dos bacharéis que, irônica e dramaticamente, também se compunha de uma imensidão de escravos, impedidos juridicamente de serem educados. Cabe lembrar que, quando abolimos o Império para substituí-lo por um regime político mais “moderno” e “livre”, 85% da população ainda era de iletrados, sendo considerados, segundo a legislação da época, cidadãos de segunda classe.

Passados mais de cento e vinte anos da fundação da República, muita coisa melhorou, ainda que, por exemplo, o percentual de analfabetos seja assustadoramente alto: 7,2% da população nacional com 15 anos de idade ou mais, o que corresponde a quase 13 milhões de pessoas, colocando, vergonhosamente, o Brasil como o oitavo país com mais iletrados no mundo, num universo de 150 nações analisadas pela Unesco em 2017. E, é bom lembrar, mesmo aqueles que têm acesso ao ensino o fazem, geralmente, em condições precárias (para não falar também dos inúmeros analfabetos funcionais). Via de regra, no Brasil, os professores são muito mal remunerados (lembremos que diversos governos estaduais, de partidos distintos, têm se negado a pagar o piso salarial definido por lei), exercem seu ofício em péssimas condições de trabalho, as escolas têm estrutura física precária e há carência de material didático.

Assim, em relação ao quadro atual, o padrão obscenamente desigual do Brasil (ainda que em proporção diversa da do passado) é reiterado: aos filhos das classes mais abastadas e das classes médias, são garantidas as melhores escolas (por meio do financiamento privado). À ralé brasileira e aos filhos dos trabalhadores regulares, sobra o resto: escolas como essas fotografadas por Guilherme Bergamini, esquecidas do poder público, reféns de violências materiais e simbólicas de toda sorte. Não bastasse tanta imoralidade, os alunos egressos das escolas públicas ainda têm que viver em uma sociedade que, com escárnio, entoa repetidamente o mantra de sua crença na meritocracia: “todos são e serão recompensados proporcionalmente por seu esforço”, reza a lenda.

Por tudo isso, as belas fotos de Bergamini não produzem propriamente espanto, pois não imaginamos cenário radicalmente diverso do retratado. Sabemos, enfim, como o Brasil funciona, e enquanto não estivermos submetidos a essas condições indignas, vamos levando nossas vidas. Ainda que vazias de alunos, podemos muito bem imaginar a que grupos sociais essas ruínas de escolas estão destinadas: aos jovens das periferias, pobres e, em sua maioria, negros.

Mas se essas fotos não nos surpreendem, elas (espera-se) nos indignam. Revolta que aumenta ainda mais quando consideramos as últimas decisões do Estado brasileiro em relação à educação. Basta recordar a PEC do Teto dos Gastos Públicos, proposta de lei enviada pelo presidente Michel Temer e aprovada no Congresso Nacional em 2016, que impede que se aumente o investimento federal pelo prazo de vinte anos, condenando as novas gerações a condições de ensino ainda piores.

Como tal decisão, claramente contrária aos interesses da maioria da população brasileira, pôde ser aprovada? Em primeiro lugar, porque nenhuma sociedade é um bloco homogêneo: se certos interesses são frontalmente contrariados com essa lei, outros são favorecidos, a começar pelos proprietários das instituições privadas de ensino. Mas não apenas eles: certamente as classes mais abastadas do país (inclusive a classe média, que tanto sofre para pagar as escolas particulares de seus filhos) continuarão a ter à sua inteira disposição jovens que, sem qualquer perspectiva de vida, têm que trabalhar em péssimas condições, por baixos salários, com altas jornadas de trabalho, etc. Trabalhar, enfim, como empregadas domésticas, porteiros de suntuosos condomínios, atendentes de telemarketing, etc. E assim os filhos das elites podem se dedicar aos ofícios mais “nobres”, já que o trabalho “sujo” é feito pelos que estão “embaixo”. Além disso, a “PEC da morte”, como ficou conhecida, é também conveniente para os “donos do poder”: governar uma massa precarizada, desinformada e tendencialmente apática e manipulável é sempre mais fácil do que ter que lidar com um grupo de cidadãos mobilizados e interessados no mundo público.

E assim, a roda do Brasil continua a girar: alguns interesses são acomodados, outros negados, e as condições para a perpetuação das injustiças são reproduzidas. E, também assim, a democracia brasileira parece ser um sonho muito distante quando se nota, por um lado, que nossa carência de educação se inicia por sua dimensão mais elementar – a do espaço físico das escolas – e, por outro, que se priva de futuro precisamente aqueles que por ela mais poderiam ser beneficiados: as crianças e os jovens do país.