
Offline
4 shots
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Um diário, um fotolivro, um pedaço de si — Offline, este objeto que costura textos e imagens produzidos pela fotógrafa Ana Rovati durante residência artística em Madri, é parte fundamental de sua vida. Digo isso não como mais um lugar-comum, mas, tendo acompanhado de perto as idas e vindas do processo, sei o quanto ele tem de vísceras. Quando saiu do país, o projeto ainda não era algo totalmente delineado, mas uma intuição, se me lembro bem, de retratar velhinhos e velhinhas, ou melhor, pessoas que estavam fora do mundo conectado pela internet. Desde já, portanto, havia o embrião não de um projeto fotográfico propriamente dito, mas de investigação intelectual e artística, que extrapolava os limites da linguagem fotográfica. Tanto é assim que lembro de conversarmos sobre como essa ideia poderia ser transposta em imagens, e não vislumbrava nada.
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Já em Madri, em algum dos Skypes trocados por nós, ela me contou que o projeto havia chegado a um ponto de inflexão radical: tinha decidido ficar sem conexão alguma com a internet, pois, assim, através da própria experiência, conseguiria pensar verticalmente o tema em questão. A princípio, pretendia ficar seis meses (se aguentasse até lá) fora da rede, período que acabou se prolongando por um ano. Durante esse tempo, sentiu as dores e delícias do contato imediato com pessoas e coisas. O raciocínio foi a mil. O pendor telúrico da virginiana aflorou. A lucidez crítica explodiu. O resultado final foi menos foto do que o esperado e muito pensamento. Sem nenhuma dúvida, pode-se dizer que, nesse breve intervalo, sua personalidade artística — de uma intuição sempre franca com a vida e consigo — se avolumou sobremaneira, engendrada por um aprendizado ético de matriz spinoziana.
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Um projeto fotográfico sem fotos poderia ser um belo exemplar da vanguarda conceitual. A esse ponto chegou Offline sem pretender. Mas Ana é uma artista sem filiações. Como então solucionar o impasse à sua maneira? Passou a escrever textos sobre. Com leveza e bom humor, descreveu situações por que passou à margem da rede, levantando questões profundas, que de tão óbvias já não podiam ser vistas por qualquer um. Sem e-mail, não conseguiu emprego; sem WhatsApp, perdeu noitadas; sem dinheiro, voltou para o Rio. Em casa, passou a entender aquilo tudo que já tinha inscrito no corpo. Leu importantes pensadores da contemporaneidade: Christoph Türcke, Hal Foster, Jonathan Crary etc. (com este último, trocou cartas). De intuitiva passou a especialista.
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O projeto artístico Offline — que aqui está — é um diário crítico ilustrado com fotografias feitas por Ana durante esse momento crucial de sua vida. Imagens e textos vão melhor se acompanhados. É o primeiro objeto (de muitos, espera-se) concebido e produzido minuciosamente pela artista, como parte de sua produção. Na esteira, surgiu convite para uma exposição. E, assim, fotos e sensações vão ganhando corpo em diversos tamanhos, cheiros e texturas antes desconhecidos através da tela do computador. Ao tornar Offline matéria táctil, Ana dá o termo mais justo àquilo que lhe arrancou pedaços. E com coragem, oferece esses pedaços — carregados de inteligência, contemplação, alegria, solidão — a quem quiser mordê-los.

Vou sair da internet. Um ano. Calma. Ainda não sei quando. Calma. Ainda é só uma ideia. Sim, estou falando sério. Isso, eu não entraria mais no Skype. Não, eu não vou desaparecer.
Sou brasileira e moro em Madri há alguns meses. Quando vim para cá, minha mãe não chorou. Não na minha frente, pelo menos. Quando eu contei a ela que ia sair da internet, ela chorou.
Já existem teorias que relacionam a ausência no mundo virtual com a morte e, obviamente, não cabe a mim explicá-las aqui. Por outro lado, é possível encontrarmos um argumento bastante lógico e direto: uma pessoa morta não poderia postar fotos na rede. A minha irmã, numa conversa, me falou: “Se tu for mesmo sair da internet, melhor fechar tua conta do Facebook ou as pessoas vão pensar que tu morreu porque não está mais respondendo”. Sábia observação.
Ao começar a experiência e deixar de estar disponível vinte e quatro horas por dia, causei uma disfunção social, “desapareci”. As pessoas já não têm “fácil” acesso a mim nem à minha imagem, já não sabem se vi ou não as mensagens no celular, por quais lugares tenho andado ou o que tenho feito. A não ser que façam parte da minha vida “real”.
Obviamente, minha mãe sabe que não estou morta e, se ela chorou, foi pela possibilidade de deixar de ter contato com a minha imagem a qualquer momento que desejasse. Eu sigo tendo celular, que, por acaso, deixo ligado vinte e quatro horas por dia. Mas isso já não parece ser suficiente.
Depois de alguns dias sem acessar a internet, me dei conta de que, apesar do meu aparente “desaparecimento” (é verdade, o número de contatos que eu tinha caiu brutalmente), a intensidade e o valor de cada uma das conversas que eu passei a ter se multiplicaram. Ou seja, se, por um lado, talvez eu tenha morrido virtualmente, por outro, confesso, fazia muito que não me sentia tão viva.
De volta ao Brasil, e ainda desconectada, converso com algumas amigas. O mundo, a criatividade, projetos, a vida.
Ana – […] mas foda mesmo é o David Bowie, que não tem medo de se reinventar.
Josi – Era, né.
A – Como assim “era”?
Não pode ser. Pode. Esse foi o diálogo responsável pela minha descoberta sobre a morte de David Bowie. Sete meses depois da morte dele. Sete!
A – É sério?
J – Tu tá falando sério ou tá te fazendo?
A – Meu deus.
J – Então tu também não sabe do Cauby Peixoto.
Ok. Podemos parar por aqui e começar a fazer as relações. Porque está claro que, como eu vivi em Madri no período em que David e Cauby morreram, eu provavelmente só teria fácil acesso à informação da morte do primeiro, venerado internacionalmente. Assim, vamos a ele.
J – Mas, Ana, foi comoção internacional. Será que os espanhóis não gostavam dele? Ninguém comentou nada por lá?
Análise 1 – Era domingo. Eu não costumava comprar jornal no domingo! Além disso, na verdade, as notícias de domingo não saem no jornal de domingo, pois jornal de papel é impresso. Se é impresso e tem que estar na rua cedinho, não dá tempo. Exato. E como o mundo conectado provavelmente se inteirou da notícia instantaneamente após a morte do artista, as capas de segunda-feira já não priorizaram o fato. A notícia ficou “velha” e, se apareceu, foi nas páginas internas. O que me faz concluir que, provavelmente, eu também não comprei o jornal naquela segunda-feira. Lógico. Para ajudar, não tive aula, local onde eu encontraria muitas pessoas e aumentaria as chances de ouvir algum comentário sobre o assunto. Ou seja, passei batido.
Análise 2 – Se você não utilizasse mais a internet para se informar, então quais seriam as suas alternativas?
– jornal diário (quantas opções e variações de opinião? Três? Sem esquecer do detalhe “descartável” do material);
– revista semanal ou mensal com as principais informações;
– amigos e pessoas na rua;
– televisão;
– rádio.

Ao somarmos todas elas, talvez cheguemos mais perto do potencial da web. É inegável que a internet é uma fonte de possibilidades para a diversidade em informação, na qual encontramos opiniões de diferentes posições políticas, especialistas e não especialistas. Uma lindeza só! Sério, por que eu não usava isso assim antes? Porque potencial não quer dizer necessariamente prática.
Análise 3 – Os dois lados da moeda
Quando descobri sobre a morte do David Bowie, eu me senti a pessoa mais alienada do mundo. O que mais eu estou perdendo? E, mesmo com a sensação de que estava lendo mais sobre notícias diárias no modo papel e dialogando sobre política com amigos mais do que quando online, prometi a mim mesma que, ao voltar à internet, dedicaria um tempo diário a notícias importantes e sites com olhares mais amplos (o oposto do monopólio informacional impresso ao qual estou limitada agora, ufa). Opa. Espera. Lembrei por que eu não usava a internet assim antes.
Acontece que, junto com essas notícias, também acabamos nos informando (sendo engolidos?) de outros detalhes do mundo, como: casamentos e términos de celebridades, qual jogador de futebol deu escândalo, tendências de maquiagem, último bafo da semana de moda, a # mais lida no Twitter, quem engordou e quem emagreceu, top 10 de receitas com ovo ou de animais fofinhos, decoração, dieta paleolítica ou do carboidrato ou de qualquer outra modalidade, a última viagem do príncipe inglês com sua linda família, a comida que o seu amigo almoçou ontem, etc.
De fato, estar offline pode ter me deixado alienada para algumas coisas. Mas, quando há o tal potencial de informação, qual é a parte do potencial que você usa? #ficaadica
