A mulher na História do Brasil: a grande estrutura invisível
Em algum momento do século XVII, o padre Guilherme Pompeu de Almeida colocou no papel as seguintes ideias que estavam em sua cabeça:
“João Ramalho, filho do Reino, teve uma filha que se casou com Bartolomeu Camacho; este teve uma filha que se casou com Jerônimo Dias Cortes; este teve outra filha que se casou com Domingos Luiz, o Carvoeiro; este teve uma filha que se casou com João da Costa; este teve uma filha Maria de Lima que se casou com João Pedroso; estes tiveram a filha Ana Lima, casada com o capitão-mor Guilherme Pompeu de Almeida” .
Esse modo de expressar a cadeia de ancestrais mostra estruturas que parecem estranhas aos costumes ocidentais: revela apenas os nomes de homens por quatro gerações, enquanto omite aqueles das mulheres. Nas mesmas gerações, aparece apenas a nomeação “filha”. Apesar do silêncio sobre o nome, a genealogia segue de mãe para filha – e não, como no Ocidente europeu, de pai para filho. Apenas na quinta geração aparece um nome feminino, o de Maria de Lima – e a sequência continua a estrutura feminina, agora com homens e mulheres sendo designados como genitores.
O que levava um paulista do século XVII a pensar assim sobre seus ascendentes? Toda a estranheza, todo o ruído, desaparece quando se conhece o modo de conceber família dos Tupi-Guarani. Para esses povos, a filha era só do pai, pois acreditavam que o útero da mulher era apenas o local onde crescia o feto a partir do sêmen – o que explica a primeira diferença da genealogia, de citar apenas os nomes dos pais.
Já a estrutura que passa de mãe para filha é facilmente inteligível quando se conhece a organização dos grupos. Em todos eles, as mulheres eram as habitantes permanentes da casa. Passada a puberdade, na hora do casamento, os homens eram obrigados a procurar noiva em outra oca – ou, na via inversa, as filhas recebiam um noivo vindo de outra oca. Com isso, as mulheres se tornavam as habitantes permanentes, as mantenedoras da tradição. Avó, filhas, netas ficavam, cada qual com seu noivo vindo de fora e os filhos ainda não casados.
Com as duas informações, se entende muito melhor a genealogia feita pelo padre Guilherme Pompeu de Almeida. Em linguagem técnica da antropologia, trata-se de uma linhagem patrilinear (daí os nomes de homens) mas matrifocal (daqui a descendência pela linha feminina) por quatro gerações. Apenas na quinta aparece uma fusão parcial com o modo ocidental de pensar, com as filhas sendo atribuídas a pai e mãe, como no Ocidente, além de serem nomeadas. Só aqui a mulher que estrutura a sequência deixa de ser invisível.
Esse modo de pensar tupi, uma vez que se conhece sua estrutura, pode ajudar a entender a vida da família de um modo bem menos ortodoxo do que o registro desse viver que aparece nas genealogias paulistanas que a descrevem. O pai do padre, o capitão-mor Guilherme Pompeu de Almeida, embora filho de letrado, casou-se com uma mulher pobre e mestiça. Ao modo dos tupi, mudou-se, em 1630, para a recém-fundada vila de Santana de Parnaíba – a casa de sua mulher. Foi viver ao lado de seu sogro bastante indianizado, cujo apelido era “Terror dos Índios”. Comprou uma área de mineração de ferro abandonada, montou uma pequena oficina e passou a fornecer ferro para os parentes de sua mulher que circulavam pelo sertão, recebendo como pagamento parte das mercadorias que traziam na volta.
Ficou rico depressa e soube investir. Na segunda metade do século, era dono de uma grande manufatura com cinco oficinas especializadas na qual trabalhavam ao menos 200 artesãos, em grande maioria escravos nativos, mas com alguns mestiços e europeus (bem pagos, apesar de formalmente escravos) nas funções mais técnicas. Juntou dinheiro suficiente para financiar negócios de alto coturno e grande amplitude espacial, como a instalação de parentes mineradores em Curitiba, a transferência de cinco mil moradores de uma vila espanhola do atual território da Bolívia para São Paulo (faziam parte do grupo artesãos especializados que construíram os grandes tesouros artísticos e arquitetônicos paulistas da época) e a construção da Colônia de Sacramento, um ponto de contrabando bem em frente a Buenos Aires.
A quase totalidade desses negócios, apesar do volume crescente de dinheiro, era fundada apenas no costume, com os créditos sendo fornecidos e os débitos liquidados sem contratos – o fiado era a forma dominante de investimento de capital no sertão. Nos tempos do capitão, a única forma de registro encontrável para tais negócios eram as menções de dívidas nos inventários e testamentos de pessoas que morriam em meio ao andamento deles ou em esporádicas menções de atas das câmaras municipais. Já o filho letrado tinha o hábito de registrar as transações que fazia em cadernos – e um deles sobreviveu, tornando-se um dos raríssimos registros escritos dos negócios feitos segundo o costume no sertão.
Esses registros são, aparentemente, puro costume ocidental de comprar e vender, mas, se colocados num banco de dados, as referências aos negócios de pai e filho mostram pouca lógica quando cruzadas com uma genealogia construída no molde ocidental, que é patrifocal. Já quando as referências são cruzadas com uma genealogia tupi, construída com as mesmas categorias que definem família que o padre emprega para fazer a sua, todos os investimentos de capital se encaixam. Os créditos de negócio fluíam pelas linhagens matrifocais, pela casa feminina: os maridos das sobrinhas que vinham para ela recebiam bastante, os sobrinhos que casavam fora, bem menos. Em outras palavras, os investimentos de capital acumulado em padrão ocidental eram alocados segundo a lógica de um menor risco de inadimplência no parentesco tupi.
É um singelo exemplo que mostra como os modos de pensar e os costumes tupi operavam, em São Paulo, em camadas bem mais fundas que as formas legais de molde ocidental, inclusive no que se refere ao enriquecimento, à aplicação de capitais e ao financiamento de uma economia cada vez mais mercantil. O fato de que o padre-empresário respeitado por todos vivia com uma índia e tinha um filho com ela era apenas um detalhe.
E, nesta singeleza, o papel central da mulher como estruturadora de toda a vida do grupo – algo que vale para toda a sociedade colonial brasileira e toda a formação posterior do país – é, propriamente falando, a espinha dorsal invisível e ainda desconhecida da formação do Brasil.