por Cassiana der Haroutiounian
A terra como território. A terra, dividida por questões políticas, religiosas, sociais. A terra separa. Desterra. Derrete. Une. Vira raiz. Lama. Pó. A terra expande e retrai e se torna uma fronteira porosa. Um pedaço de terra nas mãos, como sinônimo de lar. De memória, de um tempo apreendido. Aquele cheiro de uma terra molhada que desperta o ritmo do batimento cardíaco.
Essa imensidão terrosa, palco de tantas travessias migratórias, de tantas ausências pelo caminho e tantos sonhos do encontro. Essa terra que já se desfez em lama em uma das maiores catástrofes do país. Uma terra distante, que deixou uma cidade como poeira e rastros de uma história.
O que faz da terra um lugar de abrigo? O que faz da terra um lugar de fuga? Atravessamos a terra e somos atravessados por ela. Uma terra que deixa marcas. Na pele e nos mapas. Um devir terra. Para nós mesmos e para alguém. Pertencer e sentir as terras nos pés, aterrado. A terra árida pelo tempo, como cicatrizes em sua trajetória. A terra que respira.
Corpos de um lado e corpos do outro. Inimigos, que definiram que uma linha dessa terra não pertencia mais ao povo vizinho. Uma terra com territórios demarcados, que te expulsaram sem deixar a chance real do retorno. Nós criamos os territórios, as linhas divisórias, as chamadas fronteiras.
“[…] Fomos nos alienando desse organismo que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade” pontua o líder indígena Ailton Krenak em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo. Somos uma unidade. Nós e Ela. Agimos e reagimos. É preciso estar atento à Terra. Despertos. Escutá-la. Senti-la. Enxergá-la. Krenak afirma que a humanidade, cada vez mais, é descolada desse organismo vivo e que parece que os únicos que ainda sentem necessidade de se agarrar a ela são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos…
“Nós, como humanos, de fato perdemos nossa conexão com a terra. Devemos ouvir novamente as batidas desse coração terroso”, afirma a artista holandesa Birgitta de Vos, que viaja o mundo coletando fragmentos de terras de diferentes lugares, agrupando esses mundos em seu estúdio, recriando outras conexões entre esses territórios. Ela desconecta essa terra de seu habitat natural para poder conectá-la novamente, trazendo uma diferente potência de acontecimentos e de encontros entre elas.
“A Terra simplesmente é”, afirma Birgitta. “E é isso que também somos, se não nos deixamos embaralhar com nossos pensamentos, opiniões e crenças… Somos todos matéria reciclada. Nosso corpo é. A terra é.”
Em Johanesburgo, o sul-africano Moshekwa Langa, criado durante o apartheid, usou a terra para criar/demarcar/resgatar Bakenberg, um vilarejo rural na província de Limpopo. Ele descobriu, quando criança, que sua terra não estava no mapa e que ninguém a conhecia. Decidiu percorrer seu vilarejo com tecidos molhados puxados por um carro nas estradas vermelhas de terra, deixando que cada um tivesse suas marcas e cicatrizes, sobrevivendo à topografia de seu território. São como restos quase materializados do vilarejo de sua infância, representando parte de um arquivo físico e de memórias ecoando a paisagem de Bakenberg, ou a fantasia dessas memórias.
A terra guardada em potes de vidro cria um novo mapa geográfico. A terra como pigmento em uma tela em branco resgata raízes e demarca um território. A Terra, nosso sítio geológico, abriga os tantos devaneios, respiros, guerras e catástrofes… A terra fértil, provedora, pulsante. Essa terra dentro da Terra precisa seguir ouvindo nossos batimentos cardíacos, guiados por um diálogo harmonioso, único. De ser e estar. Nós e Ela.